quarta-feira, 27 de maio de 2009

CIÊNCIA POLÍTICA E TEORIA GERAL DO ESTADO

Ciência Política:

Abaixo o cronograma final do semestre acompanhado de seus respectivos textos:
06/05 - Formas de governo


DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Formas de Governo
I. Problemática. A análise das Formas de Governo é tida como conceptualmente
distinta da análise referente às formas de Estado ou de regime. Estas, sejam
definidas recorrendo aos critérios aristotélicos do poder de um, de poucos,
de todos, exercido para utilidade de um, de poucos, ou de todos; sejam definidas em
termos modernos como regimes autoritários, totalitários e democráticos; enfim,
fiquem na simples distinção entre monarquia (cujo titular ocupa um cargo
hereditário) e república (cujo titular ocupa um cargo eletivo), respeitam a problemas
diversos dos evocados pelas Formas de Governo propriamente ditas.
Deixando de lado tanto a variedade de regimes autoritários, caracterizados pelo
poder arbitrário de um chefe ou, consoante é dado observar mais amiúde, pela
instituição militar, como a diversidade dos regimes totalitários, de poder
centralizado num partido político, fixaremos principalmente a nossa atenção na
distinção das diferentes Formas de Governo no âmbito das formas de Estado
democrático. Fazendo assim, se verá, entre outras coisas, que a distinção
monarquia/república perde toda a importância prática.
Em síntese, a análise das Formas de Governo atende à dinâmica das relações entre o
Poder Executivo e o Poder Legislativo e respeita, em particular, às modalidades de
eleição dos dois organismos, ao seu título de legitimidade e à comparação das suas
prerrogativas. Além disso, dada a natureza dos regimes democráticos modernos,
assume uma importância fundamental na compreensão e explicação do
funcionamento das diversas Formas de Governo a organização dos sistemas
partidários neles presentes e operantes.
II. A bipartição clássica. A bipartição clássica distingue a Forma de Governo
parlamentar e a Forma de Governo presidencial. É preferível manter essas
expressões a usar, em vez delas, a distinção entre república parlamentar e república
presidencial, uma vez que, enquanto o presidencialismo é apenas típico de um
sistema republicano, a Forma de Governo parlamentar se encontra tanto no âmbito
dos sistemas monárquicos quanto no dos sistemas republicanos. Mais: sob muitos
pontos de vista, é de salientar que o Governo parlamentar nasceu, se desenvolveu e
atingiu sua mais elevada expressão no âmbito das monarquias constitucionais,
especialmente no da monarquia britânica. Mas há outros exemplos luminosos, os
das monarquias escandinavas: Dinamarca, Noruega, Suécia. Segundo alguns
autores, esse desenvolvimento positivo seria devido ao fato de que a exclusão da
competição política pela conquista do mais alto cargo do Estado – ao mesmo tempo
que o Parlamento lhe limitava e contrastava o poder – exerceu um efeito moderador
na luta política dos países acima mencionados.
A primeira e mais clara distinção que conhecemos das duas formas de Governo é a
formulada por Walter Bagehot. No seu famoso estudo sobre a Constituição inglesa
(1865–1867), este estudioso britânico punha em contraste a Forma de Governo
parlamentar do Reino Unido, por ele definida como cabinet government, com a
Forma de Governo dos Estados Unidos, também por ele definida como presidential
government. Essa distinção, não obstante a publicação um pouco mais tardia do
volume Congressional government (1885) por parte do futuro presidente dos
Estados Unidos, Woodrow Wilson, continua conceptual e concretamente válida. A
grande maioria das Formas de Governo contemporâneas remonta ou ao protótipo
britânico ou ao estadunidense; mas essas duas formas mantiveram-se
substancialmente intactas durante o século passado. Os países de emigração branca
de língua inglesa, por exemplo, como a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia, a
África do Sul e muitas ex-colônias da África e da Ásia, adotaram o cabinet
government, enquanto a quase totalidade dos países do continente latino-americano
introduziu o presidential government. Pelo que concerne à Europa continental, se
excluirmos o Governo presidencial da V República francesa, que depois
analisaremos, a forma dominante é a parlamentar. Por sua vez, as diferenças que
existem entre o parlamentarismo inglês clássico e os vários tipos continentais são
quase inteiramente devidas às diferenças características dos sistemas partidários.
III. O governo parlamentar. A Forma de Governo parlamentar é caracterizada pelo
fato de as articulações governativas surgirem do seio do Parlamento (tanto que
Bagehot punha na boa eleição do Governo a função mais importante do Parlamento)
e de ele ser responsável perante esse mesmo Parlamento que, em caso extremo,
pode decretar a sua queda. Por sua vez, nos sistemas parlamentares, o Governo tem
o poder de dissolver o Parlamento ou de pedir a sua dissolução ao chefe do Estado,
quando não obtiver o seu voto de confiança ou, em certos casos, como no típico
caso inglês, para convocar novas eleições em circunstâncias melhores.
O elemento diferenciador de maior relevo entre os vários tipos de Governo
parlamentar está na natureza do sistema partidário. De fato, onde existem só dois
partidos ou, então, um partido obtém sozinho a maioria absoluta das cadeiras, a
Forma de Governo parlamentar apresenta características de solidez e de estabilidade
maiores que quando o Governo é formado por coalizões de vários partidos. Do
mesmo modo, o funcionamento de um sistema será positivamente influenciado com
a presença de um partido de oposição que possa apresentar-se, por si só, como
alternativa legítima e acreditável de Governo.
O modelo inglês é precisamente caracterizado pelo revezamento periódico,
recentemente tornado um pouco mais difícil, de um ou outro dos maiores partidos
na condução do Governo. Dadas as características da competição eleitoral em
circunscrições uninominais de um só turno e a existência de dois únicos partidos
com possibilidades de obter a maioria absoluta das cadeiras, a incumbência de
formar Governo é automaticamente confiada, pelo chefe do Estado (no caso inglês,
o monarca), ao líder do partido de maioria. Esta praxe, entre outras, torna obsoleta a
afirmação que se cita de Bagehot sobre a função mais importante do Parlamento e
acentua a primazia do party government sobre a assembléia, até quanto aos limites
da quantidade e qualidade da produção legislativa que dela provém.
Nos sistemas parlamentares formados segundo o modelo britânico, o primeiroministro
o é enquanto líder do partido da maioria. Essa coincidência de cargos é de
decisiva importância para manter a coesão e a disciplina do grupo parlamentar e,
por conseguinte, para garantir a tradução do programa governamental em leis. Não
é só o grupo parlamentar do partido da maioria que tem interesse em manter a sua
unidade de ação. Por seu turno, o partido da oposição constitui em seu interior um
Governo fantasma (shadow cabinet), com o duplo objetivo de exercer um estreito
controle sobre as atividades e decisões governamentais e de apresentar ao eleitorado
uma articulação ministerial alternativa, de algum modo já consistente.
Ao lado do sistema do cabinet government de tipo britânico, baseado no Governo
exclusivo do partido de maioria e na sua coesão, existem os Governos de coalizão,
característicos das democracias continentais européias. Nessas, o problema
fundamental é o da formação de uma maioria governativa entre vários partidos que
dê garantias de uma suficiente homogeneidade e de uma adequada duração. Nestes
sistemas multipartidários, particularmente nos escandinavos, a consistência política
e eleitoral dos partidos social-democráticos e a reduzida distância ideológica entre
os partidos "burgueses" da oposição têm permitido a formação de uniões
ministeriais estáveis. Em outros sistemas, especialmente nos da Europa meridional
(incluída a França da IV República), a instabilidade das coalizões governamentais
parece endêmica, embora raramente leve à mudança da classe política e dos
ministrables, justamente por não conseguir fazer circular o pessoal político.
Contra a estabilidade do Governo parlamentar nos sistemas multipartidários têm
sido tentados diversos corretivos. Baseando-se na dramática experiência da
instabilidade governativa da República de Weimar e na preocupação de evitar o
vácuo do poder, a lei fundamental da República Federal Alemã (Grundgesetz)
ratifica a necessidade de que a desconfiança relativa a um chanceler não possa ser
declarada senão através de um voto de desconfiança construtivo, um voto com o
qual se eleja um novo chanceler. Embora se duvide que em condições de crise real
tal mecanismo possa assegurar a estabilidade da Forma de Governo, ele pode operar
como elemento de dissuasão, principalmente em relação aos componentes
turbulentos da maioria governativa, e também como instrumento de esfriamento de
tensões emergentes.
Há ainda uma observação necessária. A análise comparada das variedades concretas
das Formas de Governo parlamentar revela que o caso italiano é hoje o único a
fazer exceção à norma generalizada de que o líder do partido ou da coalizão de
partidos vitoriosos nas eleições se torne automaticamente primeiro-ministro, uma
prática que confere assim maior peso e importância imediata à escolha dos eleitores
e atribui, ao mesmo tempo, uma clara responsabilidade ao partido da maioria,
relativa ou absoluta, e ao seu líder.
IV. O governo presidencial. A Forma de Governo presidencial é caracterizada, em
seu estado puro, pela acumulação, num único cargo, dos poderes de chefe do Estado
e de chefe do Governo. O presidente é eleito pelo sufrágio universal do eleitorado,
subdividido ou não em colégios. Nesta forma de Governo, o presidente ocupa uma
posição plenamente central em relação a todas as forças e instituições políticas. Pelo
que se refere ao caso estadunidense, o presidente é ali, pelo menos nominalmente, o
chefe do seu partido; é o chefe do Governo ou administration, escolhe pessoalmente
os vários ministros ou secretários de departamentos, que terão de abandonar o cargo
a seu pedido e não são responsáveis perante o Congresso. O presidente representa a
nação nas relações internacionais; estipula, se bem que sujeito ao advice and
consent do Senado, os tratados internacionais; é a ele que cabe o poder de declarar a
guerra. Além disso, é ele quem tem a iniciativa e é fonte das decisões e das leis
mais importantes.
A centralidade do seu papel lhe advém do fato de haver sido eleito pela totalidade
do corpo eleitoral. A ele, contrapostos, estão os representantes da Câmara, eleitos
em circunscrições uninominais de tamanhos similares e porta-vozes de interesses
setoriais, e os senadores, eleitos em colégios que cobrem todo o território dos
diversos Estados, dois por cada um dos cinqüenta Estados da União. Observe-se,
além disso, que a duração, ou tenure, do Executivo e dos membros do Legislativo é
significativamente diferente. Enquanto os Congressmen se submetem a novas
eleições de dois em dois anos e os senadores permanecem no cargo seis anos, com
renovação de um terço do Senado também de dois em dois anos, o mandato
presidencial é de quatro anos, renovável uma só vez (emenda expressamente
introduzida, depois que Franklin D. Roosevelt obteve a eleição por quatro mandatos
sucessivos).
A centralidade do presidente dentro do sistema de tipo norte-americano ressalta
ainda mais claramente, se considerarmos o papel exercido pelas outras instituições.
Pelo que respeita aos partidos políticos americanos, seu momento de maior relevo,
visibilidade e dinamismo, a única fase em que cumprem uma função nacional, está
no processo de seleção do candidato presidencial, a chamada nomination, e no
folclore, muito mais que debate político, que caracteriza as respectivas conventions.
A seguir às recentes reformas que ampliaram e reforçaram a democraticidade do
processo de eleição e escolha dos delegados à Convention, o declínio dos
mecanismos partidários nacionais mais se veio a acentuar.
Reflexo imediato deste processo, o presidente acaba por ser o chefe visível de um
partido evanescente (o dos delegados à Convention), enquanto os representantes do
seu próprio partido na Câmara e no Senado não estão, muitas vezes, a ele ligados
por qualquer orientação específica, não apresentam características de
homogeneidade ideológica ou política, nem possuem uma disciplina de voto. A
crescente impossibilidade de o presidente fazer passar o seu programa legislativo é
uma das mais relevantes conseqüências deste estado de coisas. Uma vez que o
Congresso reage às iniciativas presidenciais, mas raramente tem a capacidade ou a
vontade de assumir, ele próprio, a iniciativa, o que daí se origina é a paralisia
institucional. E isso se deve, em grande parte, à decadência dos partidos, causa e
efeito da fragmentação da representação política, e à sua falta de coesão.
Contudo, o presidente é, no bem e no mal, o fulcro do sistema. Além de escolher os
membros da administration, em tempos mais recentes ele criou para si, ampliandoo,
um verdadeiro e autêntico staff na Casa Branca, incumbido não só de manter
contatos com o Congresso, desempenhar a atividade de relações públicas e de
controlar o próprio desempenho dos vários departamentos, mas também de fazer
funcionar a máquina da reeleição. Enfim, ele possui amplos poderes de nomeação,
alguns particularmente importantes como os relativos ao judiciário e, mais
especificamente, à escolha dos juízes da Corte Suprema. Embora o Senado exerça,
às vezes, com vigor e rigor, os seus poderes de confirmation, a discricionariedade
do presidente mantém-se bastante ampla e os casos de rejeição são limitados,
freqüentemente clamorosos, raras vezes devido ao facciosismo do Senado.
Devido precisamente a que o sistema gira em torno da figura do presidente, a sua
capacidade e personalidade têm influído, de forma decisiva, tanto na evolução da
instituição como no funcionamento global do sistema. Historicamente, o sistema
presidencial norte-americano se consolidou graças ao primeiro presidente,
Washington, e a outro dos que lhe sucederam, Andrew Jackson; aumentou
consideravelmente seus poderes primeiro com Lincoln, que afirmou a preeminência
do Governo federal sobre os direitos dos Estados, depois com Theodore Roosevelt,
Woodrow Wilson e, principalmente, em virtude também dos desafios internos e
externos, na paz e na guerra, com Franklin D. Roosevelt, até à chegada da tão
criticada presidência imperial de Lyndon Johnson.
Que a instituição depende grandemente, tanto em seu funcionamento como em seus
poderes efetivos, de quem ocupa o cargo revela-o claramente a passagem, em
menos de dez anos, da preocupação predominante da imperial à imperiled
presidency (presidência em perigo). Uma Forma de Governo como a presidencial,
que depende, em tão larga medida, da capacidade do sistema em escolher uma
leadership à altura dos tempos e dos problemas, não pode deixar de experimentar as
conseqüências fortemente negativas dos contragolpes derivados do mau
funcionamento do processo de seleção. Então, o passo do credibility gap
johnsoniano ao escândalo nixoniano do Watergate é deveras curto. E a reforma total
da administração, fenômeno sem precedentes decidido por Carter no verão de 1979
para reforçar o seu vacilante mandato e para fazer subir o seu índice de
popularidade, parece um subterfúgio que não consegue fazer desaparecer os
sintomas de uma crise que, de política, pode tornar-se institucional.
A mais importante e conhecida das variantes do Governo presidencial é a do
modelo constitucional da V República francesa. As diferenças formais e
substanciais em relação à forma presidencial norte-americana são muitas; mas
também existem algumas semelhanças importantes. Destas, a mais relevante é a que
respeita à eleição direta do presidente da República por parte da população
(processo introduzido sob emenda constitucional em 1962, depois que a eleição de
De Gaulle, em 1958, tinha sido obra de um colégio de notáveis) e,
conseqüentemente, a sua legitimação por parte de um corpo eleitoral nacional. O
contraste é com a Assembléia Nacional, composta de representantes eleitos em
circunscrições uninominais com votação majoritária e desempate.
Além desta semelhança, importante pelo título de legitimidade que o presidente
adquire, existe uma gama de diferenças que o modelam globalmente como um
sistema não assimilável ao de tipo norte-americano. Antes de tudo, o presidente da
República não é, ao mesmo tempo, chefe do Governo. Contudo, é da sua
competência a nomeação do primeiro-ministro, que dependerá dele de fato, tal
como os ministros escolhidos mediante minuciosa consulta e acordo. Teoricamente,
o Governo não tem necessidade de um voto explícito de confiança da Assembléia;
esta, não obstante, pode votar uma moção de desconfiança. Neste caso, o presidente
da República poderá decidir se aceita a demissão do Governo ou dissolve a
Assembléia. Mas à dissolução só se poderá recorrer um ano após as eleições
legislativas.
O mandato do presidente francês dura sete anos e é renovável. Não é de excluir uma
evolução do sistema em sentido presidencialista, nem tampouco uma reafirmação
do poder da Assembléia. O período de pouco mais de vinte anos de vigência da
Constituição da V República, com a sucessão de quatro presidentes (De Gaulle,
Pompidou, Giscard e Mitterrand) tão diferentes pela origem e personalidade, não
permite aventar hipóteses fundadas. O mandato da Assembléia é de cinco anos. A
primazia do presidente no sistema foi, muitas vezes, reafirmada no confronto com
as articulações governamentais, com o primeiro-ministro e com a Assembléia, tanto
por De Gaulle como por Giscard d'Estaing.
Diversamente do que ocorre no sistema norte-americano, o papel dos partidos na
eleição do presidente francês e na formação de uma maioria parlamentar é muito
importante, talvez decisivo. Especialmente depois do desaparecimento de De Gaulle
que, pela sua personalidade e pelo seu passado, pôde, até um certo ponto e um certo
momento (o desempate com Mitterrand em 1965 constituiu uma reviravolta),
desempenhar o papel de representante, super partes, as sucessivas eleições
presidenciais de Pompidou, em 1969, e, sobretudo, de Giscard, em 1974, e de
Mitterrand, em 1981, puseram a descoberto a divisão do corpo eleitoral em dois
campos opostos, de acordo com as linhas partidárias. De igual modo, as eleições
legislativas de 1973 e 1978 tiveram de passar por uma segunda votação em cada
uma das circunscrições para uma decisão entre o candidato da maioria e o da
oposição. Coisa inteiramente diversa de meros agrupamentos de tendências
particularistas, mas, ao mesmo tempo, não tão disciplinados e coesos como os
partidos britânicos e, de qualquer modo, obrigados a recorrer à formação de
coalizões governativas, os partidos franceses constituem o suporte indispensável de
qualquer maioria presidencial.
Mantém-se, contudo, aberto o problema, constitucionalmente muito delicado, da
convivência entre um presidente de uma facção política e uma maioria parlamentar
suficientemente forte e unitária de outra facção. Enquanto no caso norte-americano,
onde não existe o poder de dissolução das Câmaras, a ampla discricionariedade do
voto de cada um dos representantes e os meios de negociação de que dispõe o
presidente permitem levar adiante pelo menos parte do programa legislativo e, de
qualquer modo, evitar um confronto institucional; no caso francês, não só existe o
risco de provocar choques frontais, como também de que as coisas declinem para
uma verdadeira e autêntica crise constitucional.
Em conclusão, este sistema de Governo presidencial, que, na aparência, parece
responder eficazmente à dupla exigência dos modernos Governos constitucionais –
estabilidade e eficiência do Executivo – mas que tira grande autoridade à iniciativa
e ao próprio poder de controle da assembléia parlamentar (que o presidente pode
suspender com os poderes extraordinários que lhe concede o art. 16), apresenta
alguns inconvenientes, potencialmente bastante sérios. Enquanto não for
experimentado, com êxito, em situação de crise, continuará a não inspirar inteira
confiança.
V. Nota sobre o governo diretorial. Esta resenha das Formas de Governo ficaria
incompleta, se não se examinasse, se quer sumariamente, a chamada forma
diretorial que caracteriza o Governo da Confederação Helvética. Por um conjunto
de motivos históricos (guerras entre cantões protestantes e católicos), étnicos
(diferenças profundas entre os grupos lingüísticos que formam a Confederação) e
constitucionais (natureza confederativa do sistema), o Conselho Federal,
rigorosamente oriundo do Poder Legislativo, é de natureza colegial. Não pode
dissolver as Câmaras, é eleito tida em conta a representação proporcional da
consistência dos diversos partidos e funciona com o revezamento periódico rotativo
do presidente do Conselho.
Alguns autores quiseram ver na forma de Governo suíço apenas a racionalização
específica de um fenômeno ou, pelo menos, de uma tendência que se manifesta
também em outras pequenas democracias ocidentais (particularmente na Áustria e
na Holanda): o enfraquecimento do poder da oposição e o surgimento de acordos
básicos de tipo consociativo, chamem-se eles Proporzdemokratie ou agrément
amical. Continuar nesta linha de pesquisa relativa aos tipos de regimes
democráticos – de alternância, centristas não-rotativos, consociativos – seria ir
muito longe. É útil, contudo, observar a esse propósito como é o papel dos partidos,
a sua base subcultural e o tipo de competição em que se empenham que diferenciam
os tipos de regimes democráticos, tal como têm servido para diferenciar, para além
da própria ordem constitucional, as várias formas de Governo democrático. Uma
vez que a democracia moderna se baseia no sistema de partidos, será a evolução e
transformação destes que introduzirá as mais importantes variações nas formas de
Governo que conhecemos e que aqui brevemente analisamos.
BIBLIOGRAFIA
AVRIL, P. Le régime politique de la V. Répubiique. Librairie Générale de Droit,
Paris, 1964.
BOBBIO, N. La teoria delle forme di governo nella storia del pensiero politico.
Giappichelli, Torino, 1976.
ELIA, L. Forme di governo. In: Enciclopedia del Diritto, Giufrè, Milano 1969, vol.
XIX, pp. 634-75.
KING, A. Executives. In: Handbook of political science. In: GREENSTEIN, F. I.;
POLSBY, N. W. Addison-Wcsley, Reading Mass., 1975, vol. 5, pp. 173-256.
Id., Modes of executive-liegisiative relations: Great Britain, France, and West
Germany. In: Legislative Studies Quarterly, I, fevereiro, 1976.
LINZ, J. Totalitarian and authoritarian regimes. In: Handbook of political science.
Cit., vol. 3, pp. 175-411.
MORTATI, C. Lezioni di diritto costituzionale italiano e comparato. Edizioni
Ricerche, Roma, 1962.
NEUSTADT, R. Presidential power: The politics of leadership. Wiley, New York,
1976³.
Presidents and prime ministers. In: ROSE, R.; SULEIMAN, E. N. (Orgs.).
American Enterprise Institute, Washington D. C., 1980.
SCHLESINGER, A. M., JR., The Imperial Presidency. Houghton Mifflin, Boston
1973.
[Gianfranco Pasquino]
Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília

13/05 - Formas de governo/Democracia

DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Democracia
I. Na teoria da democracia confluem três tradições históricas. Na teoria
contemporânea da democracia confluem três grandes tradições do pensamento
político: a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de
Governo, segundo a qual a democracia, como Governo do povo, de todos os
cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, distinguese
da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de
poucos; b) a teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania popular, na
base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção
descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna
representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o
inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o
Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas
históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a
antiga democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a
aristocracia), na qual se origina o intercâmbio característico do período prérevolucionário
entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo
genuinamente popular é chamado, em vez de democracia, de república.
O problema da democracia, das suas características, de sua importância ou
desimportância é, como se vê, antigo. Tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas
da política, tendo sido reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira
isso é verdade que um exame do debate contemporâneo em torno do conceito e do
valor da democracia não pode prescindir de uma referência, ainda que rápida, à
tradição.
II. A tradição aristotélica das três formas de governo. Uma das primeiras disputas
de que se tem notícia em torno das três formas de Governo é narrada por Heródoto
(III, 80-83). Otane, Megabizo e Dario discutem sobre a futura forma de Governo da
Pérsia. Enquanto Megabizo defende a aristocracia e Dario a monarquia, Otane toma
a defesa do Governo popular, que segundo o antigo uso grego chama de Isonomia,
ou igualdade das leis ou igualdade diante da lei, com o argumento que ainda hoje os
defensores da democracia têm como fundamental: "Como poderia a monarquia ser
coisa perfeita, se lhe é lícito fazer tudo o que deseja sem o dever de prestar
contas?" Igualmente clássico é o argumento com o qual o fautor da oligarquia e, em
seu encalço, o fautor da monarquia condenam o Governo democrático: "Não há
coisa... mais estulta e mais insolente que uma multidão incapaz". Como pode
governar bem "aquele que não recebeu instrução nem conheceu nada de bom e de
conveniente e desequilibra os negócios públicos intrometendo-se sem
discernimento, semelhante a uma torrente caudalosa"?
Das cinco formas de Governo descritas por Platão na República, aristocracia,
timocracia, oligarquia, democracia e tirania, só uma delas, a aristocracia, é boa. Da
democracia diz-se que "nasce quando os pobres, após haverem conquistado a
vitória, matam alguns adversários, mandam outros para o exílio e dividem com os
remanescentes, em condições paritárias, o Governo e os cargos públicos, sendo
esses determinados, na maioria das vezes, pelo sorteio" (557a), e é caracterizada
pela "licença". O mesmo Platão, além disso, reproduz no Político a tradicional
tripartição das formas puras e das formas degeneradas e a democracia é aí definida
como o "Governo do número" (291d), "Governo de muitos" (302c) e "Governo da
multidão" (303a). Distinguindo as formas boas das formas más de Governo com
base no critério da legalidade e da ilegalidade, a democracia é, nesse livro,
considerada a menos boa das formas boas e a menos má das formas más de
Governo: "Sob todo o aspecto é fraca e não traz nem muito benefício nem muito
dano, se a compararmos com outras formas, porque nela estão pulverizados os
poderes em pequenas frações, entre muitos. Por isso, de todas as formas legais, é
essa a mais infeliz, enquanto entre todas as que são contra a lei é a melhor. Se todas
forem desenfreadas, é na democracia que há mais vantagem para viver; por outro
lado, se todas forem bem organizadas, é nela que há menor vantagem para viver"
(303 a e b). Nas Leis, na tripartição clássica entra a bipartição (que depois de
Maquiavel nos habituamos a chamar de moderna) entre as duas "matrizes das
formas de Governo", que são a monarquia cujo protótipo é o Estado persa e a
democracia cujo protótipo é a cidade de Atenas. Ambas são, se bem que por
motivos opostos, más; uma por excesso de autoridade e outra, pelo excesso de
liberdade. Até na variedade das classificações a democracia, uma vez mais, é
objurgada como o regime da "liberdade bem desenfreada" (701b).
Na tipologia aristotélica, que distingue três formas puras e três formas corruptas,
conforme o detentor do poder governa no interesse geral ou no interesse próprio, o
"Governo da maioria" ou "da multidão", distinto do Governo de um só ou do de
poucos, é chamado "politia", enquanto o nome de democracia é atribuído à forma
corrupta, sendo a mesma definida como o "Governo de vantagem para o pobre" e
contraposta ao "Governo de vantagem para o monarca" (tirano) e ao "Governo de
vantagem para os ricos" (oligarquia). A forma de Governo que, na tradição pósaristotélica,
torna-se o Governo do povo ou de todos os cidadãos ou da maioria
deles é no tratado aristotélico governo de maioria, somente enquanto Governo de
pobres, e é, portanto, Governo de uma parte contra a outra parte, embora da parte
geralmente mais numerosa. Da democracia entendida em sentido mais amplo,
Aristóteles subdistingue cinco formas: 1) ricos e pobres participam do Governo em
condições paritárias. A maioria é popular unicamente porque a classe popular é
mais numerosa. 2) Os cargos públicos são distribuídos com base num censo muito
baixo. 3) São admitidos aos cargos públicos todos os cidadãos, entre os quais os que
foram privados de direitos civis após processo judicial. 4) São admitidos aos cargos
públicos todos os cidadãos sem exceção. 5) Quaisquer que sejam os direitos
políticos, soberana é a massa e não a lei. Este último caso é o da dominação dos
demagogos, ou seja, a verdadeira forma corrupta do Governo popular.
Salvo poucas exceções, a tripartição aristotélica foi acolhida em toda a tradição do
pensamento ocidental, pelo menos até Hegel, ao qual chega quase extenuada, e
tornou-se um dos lugares-comuns da tratadística política. Para assinalar algumas
etapas desse longo percurso, recordamos Marsílio de Pádua (Defensor pacis, I, 8),
São Tomás de Aquino (Summa Theologica, I-II, qu. 105, art. 1), Bodin (De la
repúblique, II, 1), Hobbes (Decive, cap. VII, Leviathan, cap. XIX), Locke (Segundo
tratado sobre o Governo, cap. X), Rousseau (Contrato social, III, 4, 5, 6), Kant
(Metafísica dos costumes, Doutrina do direito, §51), Hegel (Linhas fundamentais
de filosofia do direito, § 273). Não faltaram algumas variações, entre as quais se
destacam três principais: a) a distinção entre formas de Estado e formas de
Governo, elaborada por Bodin, com base na distinção entre a titularidade e o
exercício da soberania, com o que se pode ter uma monarquia, um Estado em que o
poder soberano pertence ao rei, governado democraticamente, pelo fato de as
magistraturas serem atribuídas pelo rei a todos indistintamente, ou uma democracia
aristocrática, como foi Roma durante um certo período de sua história, ou uma
aristocracia democrática, e assim por diante; b) a supressão da distinção entre
formas puras e formas corruptas, feita por Hobbes, com base no princípio de que
para um poder soberano absoluto não se pode estabelecer nenhum critério para
distinguir o uso do abuso de poder, e portanto o Governo bom do Governo mau; c)
a degradação, introduzida por Rousseau, das três formas de Governo nos três modos
de exercício do poder executivo, ficando firme o princípio de que o poder
legislativo, isto é, o poder que caracteriza a soberania pertence ao povo, cuja
reunião num corpo político por meio do contrato social Rousseau chama de
república, não de democracia (que é apenas uma das formas com que se pode
organizar o poder executivo).
III. A tradição romano-medieval da soberania popular. Os juristas medievais
elaboraram a teoria da soberania popular, partindo de algumas conhecidas
passagens do Digesto, tiradas principalmente de Ulpiano (Democracia, I, 4, 1), em
que depois da celebérrima afirmação quod principi placuit, legis habet vigorem,
diz-se que o príncipe tem autoridade porque o povo lha deu (utpote cum lege regia,
quae de imperio eius lata est, populus ei et in eum omne suum imperium et
potestatem conferat), e de Juliano (democracia I, 3, 32), em que, a propósito do
costume, como fonte de direito, diz-se que o povo cria o direito não apenas por
meio do voto, dando vida às leis, mas também rebus ipsis et factis, dando vida aos
costumes. O primeiro passo serviu para demonstrar que, fosse qual fosse o efetivo
detentor do poder soberano, a fonte originária desse poder seria sempre o povo e
abriu o caminho para a distinção entre a titularidade e o exercício do poder, que
teria permitido, no decorrer da longa história do Estado democrático, salvar o
princípio democrático não obstante a sua corrupção prática. O segundo passo
permitiu verificar que, nas comunidades nas quais o povo transferiu para outros o
poder originário de fazer as leis, sempre conservara, apesar de tudo, o poder de criar
direito por meio da tradição. Com respeito a esse segundo tema, a tese que fautores
e adversários da soberania popular debateram era se o costume tinha ou não força
para ab-rogar a lei (como é sabido, os textos de Justiniano sobre esse ponto são
contraditórios). Em outras palavras, se o direito derivado diretamente do povo tinha
maior força ou menor força que o direito emanado do imperador. Em relação ao
primeiro tema, a disputa entre defensores e opositores da soberania popular se
concentrou sobre o significado que deve ser dado à passagem do poder do povo ao
imperador. Tratava-se, em outras palavras, de estabelecer se essa passagem deveria
ser considerada uma transferência definitiva, tanto do exercício como da
titularidade (uma translatio imperii, no verdadeiro sentido), ou uma concessão
temporária e revogável em princípio, com a conseqüência de que a titularidade do
poder teria permanecido no povo e ao príncipe seria confiado apenas o exercício do
poder (uma concessio imperii pura e simples). Entre os antigos glosadores e mais
conhecidos fautores da tese concessio está Azo, segundo o qual o povo jamais
abdicou inteiramente de seu poder. Basta lembrar que, depois de tê-lo transferido,
revogou-o em várias ocasiões, afirmando Hugolino, abertamente, que o povo jamais
transferiu o poder ao imperador de modo tal que não ficasse algum vestígio junto de
si, porque mais do que tudo constituiu o imperador como seu procurador.
Numa das obras fundamentais do pensamento político medieval, certamente a mais
rica de esquemas destinados a serem desenvolvidos pelo pensamento político
moderno, o Defensor pacis de Marsílio de Pádua, afirma-se e demonstra-se
abertamente, com vários argumentos, o princípio de que o poder de fazer leis, em
que se apóia o poder soberano, diz respeito unicamente ao povo, ou à sua parte mais
poderosa (valentior pars), o qual atribui a outros não mais que o poder executivo,
isto é, o poder de governar no âmbito das leis. De um lado, portanto, "o poder
efetivo de instituir ou eleger um Governo diz respeito ao legislador ou a todo corpo
dos cidadãos, assim como lhe diz respeito o poder de fazer leis... Da mesma forma
diz respeito ao legislador o poder de corrigir e até de depor o governante, onde
houver vantagem comum para isso" (I, 15, 2). Por outro lado, enquanto a causa
prima do Estado é o legislador, o governante (a pars principans) é a causa
secundaria ou, segundo outras expressões mais cheias, "é a causa instrumental e
executiva", no sentido de que quem governa age pela "autoridade que lhe foi
outorgada para tal fim pelo legislador e segundo a forma que esse lhe indicar" (I,
15, 4). Essa teoria, assim já tão bem elaborada por Marsílio, segundo o qual, dos
dois poderes fundamentais do Estado – o legislativo e o executivo –, o primeiro
enquanto pertença exclusiva do povo é o poder principal, ao passo que o segundo,
que o povo delega a outros sob forma de mandato revogável, é poder derivado, é
um dos pontos cardeais das teorias políticas dos escritores dos séculos XVII e
XVIII. Esses são considerados com razão os pais da democracia moderna. Há,
apesar de tudo, entre Locke e Rousseau, uma diferença essencial na maneira de
conceber o poder legislativo: para Locke, esse deve ser exercido por representantes,
enquanto para Rousseau deve ser assumido diretamente pelos cidadãos.
A doutrina da soberania popular não deve ser confundida com a doutrina
contratualista (v. Contratualismo), seja porque a doutrina contratualista nem sempre
teve êxitos democráticos (pense-se em Hobbes, para dar um exemplo comum, mas
não se esqueça Kant, que é contratualista mas não democrático), seja porque muitas
teorias democráticas, sobretudo na medida em que se caminha para a Idade
Contemporânea, prescindem completamente da hipótese contratualista. Do mesmo
modo que nem todo contratualismo é democrático, assim nem todo democratismo é
contratualista. Isso é certo na medida em que o contratualismo representa, em
algumas das suas mais conhecidas expressões, um dos grandes filões do
pensamento democrático moderno. A teoria da soberania popular e a teoria do
contrato social estão estreitamente ligadas, por duas razões, pelo menos: o populus
concebido como universitas civium é ele mesmo, na sua origem, o produto de um
acordo (o chamado pactum societatis); uma vez constituído o povo, a instituição do
Governo, quaisquer que sejam as modalidades da transmissão do poder, total ou
parcial, definitivo ou temporário, irrevogável ou revogável, acontece na forma
própria de contrato (o chamado pactum subjectionis). Por meio da teoria da
soberania popular, a teoria do contratualismo entra de pleno direito na tradição do
pensamento democrático moderno e torna-se um dos momentos decisivos para a
fundação da teoria moderna da democracia.
IV. A tradição republicana moderna. Malgrado o pensamento grego ter dado
preferência à teoria das três formas distintas de Governo, sabe-se que ele não
desconhece, como já vimos nas Leis de Platão, a contraposição entre as duas formas
opostas da democracia e da monarquia. O desenvolvimento da história romana
repropõe ao pensamento político, mais do que o tema da tripartição (que foi talvez
representado na teorização da república romana como Governo misto), o tema da
contraposição entre reino e república, ou entre república e principado. Nos
escritores medievais, a tripartição aristotélica e a bipartição entre reino e república
correm muitas vezes de forma paralela: Santo Tomás acolhe juntamente com a
tripartição clássica a distinção entre regímen politicum et regimen regale, fundada
sobre a distinção entre Governo baseado nas leis e Governo não baseado nas leis.
Certamente foi a meditação da história da república romana, unida às considerações
sobre as coisas do próprio tempo, que fez Maquiavel escrever, no início da obra que
ele dedicou ao principado, que "todos os Estados, todos os domínios que tiveram e
têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados". Se bem
que a república, em sua contraposição à monarquia, não se identifique com a
democracia, com o "Governo popular", até porque nas repúblicas democráticas
existem repúblicas aristocráticas (para não falar do Governo misto que o próprio
Maquiavel vê como um exemplo perfeito na república romana), na noção idealizada
da república que de Maquiavel passará por intermédio dos escritores radicais dos
séculos XVII e XVIII até à Revolução Francesa, entendida em sua oposição ao
governo real, como aquela forma de Governo em que o poder não está concentrado
nas mãos de um só, mas é distribuído variadamente por diversos órgãos colegiados,
embora, por vezes, contrastando entre si, acham-se constantemente alguns traços
que contribuíram para formar a imagem ou pelo menos uma das imagens da
democracia moderna, que hoje, cada vez mais freqüentemente, é definida como
regime policrático oposto ao regime monocrático. Sobre essa linha, um escritor, que
é considerado justamente como um precursor do democratismo moderno, Johannes
Althusius, expondo no último capítulo de sua Politica methodice digesta (1603), a
diferença entre as várias formas de Governo, distingue-as segundo o summus
magistratus por monarchicus ou poliarchicus, usando uma terminologia que se
tornará familiar para a ciência política norte-americana com Robert Dahl, o qual no
A preface to democratic theory (1956) elabora, de encontro às teorias tradicionais
ou que ele considera tradicionais, da democracia madisoniana e populista, a teoria
da Polyarchal democracy. Ainda uma vez, se por democracia se entende a forma
aristotélica, a república não é democracia; mas no seu caráter peculiar de "Governo
livre", de regime antiautocrático, encerra um elemento fundamental da democracia
moderna na medida em que por democracia se entende toda a forma de Governo
oposta a toda a forma de despotismo.
Não obstante a diferença conceptual, as duas imagens da democracia e da república
terminam por sobrepor-se e por confundir-se nos escritores estudados recentemente
por Franco Venturi, os quais exaltam, juntamente com as repúblicas antigas, as
repúblicas pequenas e livres do tempo, desde a Holanda até Gênova, Veneza, Lucca
e Genebra do citoyen virtueux Jean-Jacques. O Oceana de Harrington, que é um dos
pontos de referência do republicanismo inglês de Setecentos, é exaltada pelo maior
defensor da idéia republicana da Inglaterra, John Toland, como "a mais perfeita
forma de Governo popular que jamais existiu". Modelada sob o exemplo das
repúblicas antigas e modernas, é, na realidade, uma democracia igualitária, não só
formalmente, fundada que é sob a rotação das magistraturas que acontece por meio
das eleições livres dos cidadãos, mas também, e substancialmente, porque é regida
por uma férrea lei agrária, que prevê a distribuição equitativa de terras de modo que
ninguém seja tão poderoso a ponto de poder oprimir o outro. Das três formas de
Governo descritas por Montesquieu, república, monarquia e despotismo, a forma
republicana de Governo compreende tanto a república democrática como a
aristocrática, quase sempre tratadas separadamente. Quando o discurso visa aos
princípios de um Governo, ao princípio próprio da república, à virtude, é princípio
clássico da democracia e não da aristocracia. E tanto é verdade que, a respeito da
aristocracia, Montesquieu foi levado a afirmar que se "a virtude é assim tão
necessária no Governo aristocrático", não o é de um modo "absoluto" (I, 3, 4). Não
se esqueça que para Saint Just e Robespierre a nova democracia que varrerá,
definitivamente, o despotismo ou o reino do terror, será o "reino da virtude". Se a
mola do Governo popular, na paz, é a virtude, soam as célebres palavras
pronunciadas por Robespierre no Discours sur les principes de la morale politique
– a mola do Governo popular na revolução é, a um tempo, a virtude e o terror. Sem
a virtude, o terror é funesto; a virtude, sem o terror, é impotente. Mas é sobretudo
em Rousseau, grande teórico da democracia moderna, que o ideal republicano e
democrático coincidem perfeitamente. No Contrato social confluem, até fundiremse,
a doutrina clássica da soberania popular, a quem compete, por meio da formação
de uma vontade geral inalienável, indivisível e infalível, o poder de fazer as leis, e o
ideal, não menos clássico mas renovado, na admiração pelas instituições de
Genebra, da república, a doutrina contratualista do Estado fundado sobre o
consenso e sobre a participação de todos na produção das leis e o ideal igualitário
que acompanhou na história, a idéia republicana, levantando-se contra a
desigualdade dos regimes monárquicos e despóticos. O Estado, que ele constrói, é
uma democracia mas prefere chamá-lo, seguindo a doutrina mais moderna das
formas de Governo, de "república". Mais exatamente, retomando a distinção feita
por Bodin entre forma de Estado e a forma de Governo, Rousseau enquanto chama
república à forma do Estado ou do corpo político, considera a democracia uma das
três formas possíveis de Governo de um corpo político, que, enquanto tal, ou é uma
república ou não é nem sequer um Estado mas o domínio privado desse ou daquele
poderoso que tomou conta dele e o governa mediante a força.
V. Democracia e liberalismo. Ao longo de todo o século XIX, a discussão em torno
da democracia se foi desenvolvendo principalmente por meio de um confronto com
as doutrinas políticas dominantes no tempo, o liberalismo de um lado e o socialismo
do outro.
No que se refere à relação de concepção liberal do Estado, o ponto de partida foi o
célebre discurso de Benjamin Constant sobre A liberdade dos antigos comparada
com a dos modernos. Para Constant, a liberdade dos modernos, que deve ser
promovida e desenvolvida, é a liberdade individual em sua relação com o Estado,
aquela liberdade de que são manifestações concretas as liberdades civis e a
liberdade política (ainda que não necessariamente estendida a todos os cidadãos)
enquanto a liberdade dos antigos, que a expansão das relações tornou impraticável,
e até danosa, é a liberdade entendida como participação direta na formação das leis
por meio do corpo político cuja máxima expressão está na assembléia dos cidadãos.
Identificada a democracia propriamente dita sem outra especificação, com a
democracia direta, que era o ideal do próprio Rousseau, foi-se afirmando, por
intermédio dos escritores liberais, de Constant e Tocqueville e John Stuart Mill, a
idéia de que a única forma de democracia compatível com o Estado liberal, isto é,
com o Estado que reconhece e garante alguns direitos fundamentais, como são os
direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião, etc., fosse
a democracia representativa ou parlamentar, na qual o dever de fazer leis diz
respeito, não a todo o povo reunido em assembléia, mas a um corpo restrito de
representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são reconhecidos direitos
políticos. Nessa concepção liberal da democracia, a participação do poder político,
que sempre foi considerada o elemento caracterizante do regime democrático, é
resolvida por meio de uma das muitas liberdades individuais que o cidadão
reivindicou e conquistou contra o Estado absoluto. A participação é também
redefinida como manifestação daquela liberdade particular que, indo além do direito
de exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de se associar para influir na política
do país, compreende ainda o direito de eleger representantes para o Parlamento e de
ser eleito. Mas se essa liberdade é conceptualmente diversa das liberdades civis,
enquanto estas últimas são meras faculdades de fazer ou de não fazer, enquanto
aquela implica a atribuição de uma capacidade jurídica específica, em que as
primeiras são chamadas também de liberdades negativas e a segunda de liberdade
positiva, o fato mesmo de a liberdade de participar, ainda que indiretamente, na
formação do Governo esteja compreendido na classe das liberdades, mostrar que, na
concepção liberal da democracia, o destaque é posto mais sobre o mero fato da
participação como acontece na concepção pura da democracia (também chamada
participacionista), com a ressalva de que essa participação seja livre, isto é, seja
uma expressão e um resultado de todas as outras liberdades. Desse ponto de vista,
se é verdade que não se pode chamar, propriamente, liberal, um Estado que não
reconheça o princípio democrático da soberania popular, ainda que limitado ao
direito de uma parte (mesmo restrita) dos cidadãos darem vida a um corpo
representativo, é ainda mais verdadeiro que segundo a concepção liberal do Estado
não pode existir democracia senão onde forem reconhecidos alguns direitos
fundamentais de liberdade que tornam possível uma participação política guiada por
uma determinação da vontade autônoma de cada indivíduo.
Em geral, a linha de desenvolvimento da democracia nos regimes representativos
pode figurar-se basicamente em duas direções: a) no alargamento gradual do direito
do voto, que inicialmente era restrito a uma exígua parte dos cidadãos com base em
critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo e depois se foi estendendo,
dentro de uma evolução constante, gradual e geral, para todos os cidadãos de ambos
os sexos que atingiram um certo limite de idade (sufrágio universal); b) na
multiplicação dos órgãos representativos (isto é, dos órgãos compostos de
representantes eleitos), que num primeiro tempo se limitaram a uma das duas
assembléias legislativas, e depois se estenderam, aos poucos, à outra assembléia,
aos órgãos do poder local, ou, na passagem da monarquia para a república, ao chefe
do Estado. Em uma e em outra direção, o processo de democratização, que consiste
no cumprimento cada vez mais pleno do princípio-limite da soberania popular,
insere-se na estrutura do Estado liberal entendido como Estado, in primis, de
garantias. Em outras palavras, ao longo de todo o curso de um desenvolvimento que
chega até nossos dias, o processo de democratização, tal como se desenvolveu nos
Estados, que hoje são chamados de democracia liberal, consiste numa
transformação mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo. Nesse
contexto histórico a democracia não se apresenta como alternativa (como seria no
projeto de Rousseau rejeitado por Constant) ao regime representativo, mas é o seu
complemento; não é uma reviravolta mas uma correção.
VI. Democracia e socialismo. Não é diferente a relação entre democracia e
socialismo. Também no que diz respeito ao socialismo, nas suas diferentes versões,
o ideal democrático representa um elemento integrante e necessário, mas não
constitutivo. Integrante porque uma das metas que se propuseram os teóricos do
socialismo foi o reforço da base popular do Estado. Necessário, porque sem esse
reforço não seria jamais alcançada aquela profunda transformação da sociedade que
os socialistas das diversas correntes sempre tiveram como perspectiva. Por outro
lado, o ideal democrático não é constitutivo do socialismo, porque a essência do
socialismo sempre foi a idéia da revolução das relações econômicas e não apenas
das relações políticas, da emancipação social, como disse Marx, e não apenas da
emancipação política do homem. O que muda na doutrina socialista a respeito da
doutrina liberal é o modo de entender o processo de democratização do Estado. Na
teoria marxista-engelsiana, para falar apenas dessa, o sufrágio universal, que para o
liberalismo em seu desenvolvimento histórico é o ponto de chegada do processo de
democratização do Estado, constitui apenas o ponto de partida. Além do sufrágio
universal, o aprofundamento do processo de democratização da parte das doutrinas
socialistas acontece de dois modos: por meio da crítica da democracia apenas
representativa e da conseqüente retomada de alguns temas da democracia direta e
por meio da solicitação de que a participação popular e também o controle do poder
a partir de baixo se estenda dos órgãos de decisão política aos de decisão
econômica, de alguns centros do aparelho estatal até a empresa, da sociedade
política até a sociedade civil pelo que se vem falando de democracia econômica,
industrial ou da forma efetiva de funcionamento dos novos órgãos de controle
(chamados "conselhos operários"), colegial, e da passagem do autogoverno para a
autogestão.
Nas efêmeras instituições criadas pelo povo parisiense por ocasião da Comuna de
Paris, Marx, como é conhecido, achou que podia colher alguns elementos de uma
nova forma de democracia que chamou "autogoverno dos produtores". As
características distintivas dessa nova forma de Estado no que diz respeito ao regime
representativo são principalmente quatro: a) enquanto o regime representativo se
funda sobre a distinção entre poder executivo e poder legislativo, o novo Estado da
Comuna deve ser "não um órgão parlamentar, mas de trabalho, executivo e
legislativo, ao mesmo tempo"; b) enquanto o regime parlamentar inserido no tronco
dos velhos Estados absolutistas deixou sobreviver consigo órgãos não
representativos e relativamente autônomos, os quais, desenvolvidos anteriormente
na instituição parlamentar, continuam a fazer parte essencial do aparelho estatal,
como o exército, a magistratura e a burocracia, a Comuna estende o sistema
eleitoral a todas as partes do Estado; c) enquanto a representação nacional
característica do sistema representativo é inteiramente distinta da proibição de
mandato autoritário, cuja conseqüência é a irrevogabilidade do cargo durante toda a
duração da legislatura, a Comuna "é composta de conselheiros municipais eleitos
por sufrágio universal nas diversas circunscrições de Paris, responsáveis e
revogáveis em qualquer momento; d) enquanto o sistema parlamentar não
conseguiu destruir a centralização política e administrativa dos velhos Estados,
antes, pelo contrário, o confirmou por meio da instituição de um parlamento
nacional, o novo Estado deveria ter descentralizado, ao máximo, as próprias
funções nas "comunas rurais" que teriam enviado seus representantes a uma
assembléia nacional à qual seriam deixadas algumas "poucas mas importantes
funções... cumpridas por funcionários comunais".
Colhendo sua inspiração nas reflexões de Marx sobre a Comuna, Lenin, em Estado
e revolução e nos escritos e discursos do período revolucionário enunciou as
diretrizes e as bases da nova democracia dos conselhos que fizeram o centro do
debate entre os principais teóricos do socialismo na década de 1920, desde Gramsci
até Rosa Luxemburg, desde Max Adler até Korsch, para terminar em Anton
Pannekoek, cuja obra Organização revolucionária e conselhos operários é de 1940.
O que caracteriza a democracia dos conselhos em relação à democracia parlamentar
é o reconhecimento de que na sociedade capitalista houve um deslocamento dos
centros de poder dos órgãos tradicionais do Estado para a grande empresa, e,
portanto, o controle que o cidadão está em grau de exercer por meio dos canais
tradicionais da democracia política não é suficiente para impedir os abusos de poder
cuja abolição é o escopo final da democracia. O novo tipo de controle não pode
acontecer senão nos próprios lugares da produção e é exercido não pelo cidadão
abstrato da democracia formal, mas pelo cidadão trabalhador por meio dos
conselhos de fábrica. O conselho de fábrica torna-se, assim, o germe de um novo
tipo de Estado, que é o Estado ou a comunidade dos trabalhadores em contraposição
ao Estado dos cidadãos; por meio de uma expansão desse tipo de órgão em todos os
lugares da sociedade em que há decisões importantes a tomar. O sistema estatal, em
seu complexo, será uma federação de conselhos unificados mediante o
reagrupamento ascendente, partindo deles até aos vários níveis territoriais e
administrativos.
VII. Democracia e elitismo. A crítica que de um lado o liberalismo faz à democracia
direta, e a crítica que, de outro lado, o socialismo move à democracia
representativa, são conscientemente inspiradas em certos pressupostos ideológicos
relacionados com diversas orientações ligadas aos valores últimos. No fim do
século XIX, contra a democracia, entendida exatamente em seu sentido tradicional
de doutrina da soberania popular, formulou-se uma crítica que pretendeu, ao
contrário, fundar-se exclusivamente sobre a observação dos fatos: uma crítica não
ideológica, mas científica, pelo menos na temática, da parte dos teóricos das
minorias governamentais, ou como serão chamados mais tarde, com um nome que
fará fortuna, da parte de elites como Ludwig Gumplowicz, Gaetano Mosca e
Vilfredo Pareto. Segundo esses escritores, a soberania popular é um ideal-limite e
jamais correspondeu ou poderá corresponder a uma realidade de fato, porque em
qualquer regime político, qualquer que seja a "fórmula política" sob a qual os
governantes e seus ideólogos o representem, é sempre uma minoria de pessoas que
Mosca chama de "classe política", aquela que detém o poder efetivo. Com essa
teoria se conclui a longa e afortunada história das três formas de Governo, que,
como se viu, está na origem da história do conceito de democracia desde o
momento em que, em toda a sociedade, de todos os tempos e em todos os níveis de
civilização, o poder está nas mãos de uma minoria, não existe outra forma de
Governo senão a oligárquica. O que não implica que todos os regimes sejam iguais,
mas simplesmente que se uma diferença pode ser destacada, ela não pode depender
de um critério extrínseco como o do número de governantes (um, poucos, muitos),
mas dos vários modos com que uma classe política se forma, reproduz-se, renovase,
organiza e exerce o poder. Mosca distinguiu, a respeito do modo com que se
formam as classes políticas, as que transmitem o poder hereditariamente e as que se
alimentam das classes inferiores; a respeito do modo como exercem o poder,
aquelas que o exercem sem controle e aquelas controladas a partir de baixo; nesse
sentido, contrapôs, no primeiro caso, democracia e aristocracia; no segundo,
democracia e autocracia, identificando pelo menos dois tipos de regimes que,
embora tenham uma classe política dominante, podem dizer-se democráticos de
bom direito. Nessa linha, a teoria das elites recupera muito do que de realístico e
não do que meramente ideológico contém a doutrina tradicional da democracia e
tem, por conseqüência, não tanto a negação de existência de regimes democráticos,
mas mais uma redefinição que terminou por se tornar preponderante na hodierna
ciência política de democracia. Em Capitalismo, Socialismo e democracia (1942)
Joseph Schumpeter contrapõe à doutrina clássica da democracia, segundo a qual a
democracia consiste na realização do bem comum por meio da vontade geral que
exprime uma vontade do povo ainda não perfeitamente identificada, uma doutrina
diversa da democracia que leva em conta o resultado considerado realisticamente
inexpugnável pela teoria das elites. Segundo Schumpeter, existe democracia onde
há vários grupos em concorrência pela conquista do poder por meio de uma luta que
tem por objeto o voto popular. Uma definição desse tipo leva em conta a
importância primária, não desprezível, da liderança em qualquer formação política e
ao mesmo tempo permite distinguir um regime do outro na base do modo como as
diferentes lideranças disputam o poder, especificando, na democracia, aquela forma
de regime em que a contenda pela conquista do poder é resolvida em favor de quem
consegue obter, numa disputa livre, o maior número de votos.
Alargando e precisando essa temática, uma redefinição de democracia que quisesse
levar em conta a ineliminável presença de mais classes políticas em concorrência
entre si deveria compreender, pelo menos, o exame de três pontos: recrutamento,
extensão e fonte do poder da classe política. Quanto ao recrutamento, uma classe
política pode chamar-se democrática quando seu pessoal é escolhido por meio de
uma competição eleitoral livre e não por meio de transmissão hereditária ou de
cooptação. Quanto à extensão, ocorre quando o pessoal de uma classe política é tão
numeroso que se divide, de maneira estável, em classe política de Governo e classe
política de oposição e consegue cobrir a área do Governo central e do Governo
local em suas diversas articulações e não é, por outra parte, constituído de um grupo
tão pequeno e fechado que dirige um país inteiro por meio de comissários ou
funcionários dependentes. Quanto à fonte de poder, ocorre quando o poder é
exercido por uma classe política representativa, com base numa delegação
periodicamente renovável e fundada sobre uma declaração de confiança, e no
âmbito de regras estabelecidas (constituição) e não em virtude de dotes carismáticos
do chefe ou como conseqüência da tomada violenta do poder (golpe de Estado,
revolta militar, revolução, etc.) (v. Elites Teoria das).
VIII. O significado formal de democracia. Considerando, de um lado, o modo como
doutrinas opostas a respeito dos valores fundamentais, doutrinas liberais e doutrinas
socialistas consideraram a democracia não incompatível com os próprios princípios
e até como uma parte integrante do próprio credo, é perfeitamente correto falar de
liberalismo democrático e de socialismo democrático, e é crível que um liberalismo
sem democracia não seria considerado hoje um "verdadeiro" liberalismo e um
socialismo sem democracia, um "verdadeiro" socialismo. Por outro lado, o modo
como uma doutrina inicialmente hostil à democracia, como a teoria das elites, foi-se
conciliando com ela, pode-se concluir que por democracia se foi entendendo um
método ou um conjunto de regras de procedimento para a constituição de Governo e
para a formação das decisões políticas (ou seja, das decisões que abrangem a toda a
comunidade) mais do que uma determinada ideologia. A democracia é compatível,
de um lado, com doutrinas de diverso conteúdo ideológico, e, de outro lado, com
uma teoria, que em algumas de suas expressões e certamente em sua motivação
inicial teve um conteúdo nitidamente antidemocrático, precisamente porque veio
sempre assumindo um significado essencialmente comportamental e não substancial
mesmo que a aceitação dessas regras e não de outras pressuponha uma orientação
favorável para certos valores, normalmente considerados característicos do ideal
democrático, como o da solução pacífica dos conflitos sociais, da eliminação da
violência institucional no limite do possível, do freqüente revezamento da classe
política, da tolerância e assim por diante.
Na teoria política contemporânea, mais em prevalência nos países de tradição
democrático-liberal, as definições de democracia tendem a resolver-se e a esgotarse
num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou,
como também se diz, de "procedimentos universais". Entre essas: 1) o órgão
político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de
membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de
segundo grau; 2) junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras
instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o
chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas); 3) todos os cidadãos que
tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e
possivelmente de sexo, devem ser eleitores; 4) todos os eleitores devem ter voto
igual; 5) todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião
formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos
que lutam pela formação de uma representação nacional; 6) devem ser livres
também no sentido de que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o
que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada); 7) tanto
para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político
supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas
várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma
vez para sempre; 8) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da
minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de
condições; 9) o órgão do Governo deve gozar da confiança do Parlamento ou do
chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo.
Como se vê, todas essas regras estabelecem como se deve chegar à decisão política
e não o que decidir. Do ponto de vista do que decidir, o conjunto de regras do jogo
democrático não estabelece nada, salvo a exclusão das decisões que de qualquer
modo contribuiriam para tornar vãs uma ou mais regras do jogo. Além disso, como
para todas as regras, também para as regras do jogo democrático se deve ter em
conta a possível diferença entre a enunciação do conteúdo e o modo como são
aplicadas. Certamente nenhum regime histórico jamais observou inteiramente o
ditado de todas essas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos
democráticos. Não é possível estabelecer quantas regras devem ser observadas para
que um regime se possa dizer democrático. Pode afirmar-se somente que um regime
que não observa nenhuma não é certamente um regime democrático, pelo menos até
que se tenha definido o significado comportamental de democracia.
IX. Algumas tipologias dos regimes democráticos. No âmbito dessa noção de
democracia e, portanto, no terreno firme dessas regras, é costume distinguir várias
espécies de regimes democráticos. A multiplicidade das tipologias depende da
variedade dos critérios adotados para a classificação das diversas formas de
democracia. Apresentaremos a lista de algumas, tomando por base a profundidade
do nível de estrutura social global em que elas se integram.
A um nível mais superficial se coloca a distinção fundada sobre o critério jurídicoinstitucional
entre regime presidencial e regime parlamentar. A diferença entre os
dois regimes está na relação distinta entre legislativo e executivo. Enquanto no
regime parlamentar, a democraticidade do executivo depende do fato de ele ser uma
emanação do legislativo, o qual, por sua vez, baseia-se no voto popular, no regime
presidencial, o chefe do executivo é eleito diretamente pelo povo. Em conseqüência
disso ele presta contas de sua ação não ao Parlamento mas aos eleitores que podem
sancionar sua conduta política lhe negando a reeleição.
Ao nível imediatamente inferior se encontra a tipologia que leva em consideração o
sistema dos partidos, o qual apresenta duas variantes. Com base no número dos
partidos (isto é, com base no critério numérico que caracteriza a tipologia
aristotélica), distinguem-se sistemas bipartidários e sistemas multipartidários (o
sistema unipartidário, pelo menos em suas formas mais rígidas, não pode ser
incluído entre as formas democráticas de Governo). Com base no modo com que os
partidos se dispõem uns para ou contra os outros no sistema, isto é, com base nos
chamados pólos de atração ou de repulsa dos diversos partidos, distinguem-se
regimes bipolares, em que os vários partidos se agregam em torno dos dois pólos do
Governo e da oposição, e multipolares, em que os vários partidos se dispõem
voltados para o centro e para as duas oposições, uma de direita e outra de esquerda.
Deve advertir-se que também, nesse caso, um sistema monopolar, no qual não
existe uma oposição reconhecida, não pode ser considerado entre as formas
democráticas de Governo. A segunda variante, introduzida por Giovanni Sartori
oferece, em relação à anterior, pelo menos, duas vantagens: a) permite levar em
conta alianças de partidos com a conseqüência de que um sistema multipartidário
pode ser bipolar e, portanto, pode ter as mesmas características de um sistema
bipartidário; b) permite uma ulterior distinção entre sistemas polarizados e sistemas
não polarizados no caso de haver nas duas extremidades franjas que tendam à
ruptura do sistema (partidos anti-sistema). Daí deriva a distinção ulterior entre
multipartidarismo extremo e multipartidarismo moderado. Tendo em conta, além do
sistema dos partidos, também o sistema da cultura política, Arend Lijphart
distinguiu os regimes democráticos com base na maior ou na menor fragmentação
da cultura política em centrífugos e centrípetos (distinção que corresponde, grosso
modo, à precedente entre regimes polarizados e não polarizados). Introduzindo, em
seguida, um segundo critério fundado sob a observação de que o comportamento
das elites pode estar mais inclinado para as coligações (coalescent) ou se tornar
mais competitivo, e combinando-o com o precedente, especificou outros dois tipos
de democracia que chamou de "democracia consociativa" (consotiational) e
"democracia despolitizada", segundo o comportamento não competitivo das elites
se junte a uma cultura fragmentada ou homogênea. A democracia consociativa tem
seus maiores exemplos na Áustria, Suíça, Holanda e Bélgica e foi chamada, tendo
em vista especialmente o caso suíço, de concordante (concordant democracy,
Konkordanz demokratie) e definida como o tipo de democracia em que acontecem
entendimentos de cúpula entre líderes de subculturas rivais para a formação de um
Governo estável.
Descendo a um nível ainda mais profundo, que é o nível das estruturas da sociedade
inferior, Gabriel Almond distinguiu três tipos de democracia: a) democracia de alta
autonomia dos subsistemas (Inglaterra e Estados Unidos), entendendo-se por
subsistemas os partidos, os sindicatos e os grupos de pressão, em geral; b)
democracia de autonomia limitada dos subsistemas (França da III República, Itália
depois da Segunda Guerra Mundial e Alemanha de Weimar); c) democracia de
baixa autonomia dos subsistemas (México). Modelos ideais mais do que tipos
históricos são as três formas de democracia analisadas por Robert Dahl no seu livro
A preface to democratic theory (1956): a democracia madisoniana que consiste
sobretudo nos mecanismos de freio do poder e coincide com o ideal constitucional
do Estado limitado pelo direito ou pelo Governo da lei contra o Governo dos
homens (no qual sempre se manifesta historicamente a tirania); a democracia
populista, cujo princípio fundamental é a soberania da maioria; a democracia
poliárquica que busca as condições da ordem democrática não em expedientes de
caráter constitucional, mas em pré-requisitos sociais, isto é, no funcionamento de
algumas regras fundamentais que permitem e garantem a livre expressão do voto, a
prevalência das decisões mais votadas, o controle das decisões por parte dos
eleitores, etc.
X. Democracia formal e democracia substancial. Juntamente com a noção
comportamental de democracia, que prevalece na teoria política ocidental e no
âmbito da "political science", foi-se difundindo, na linguagem política
contemporânea, um outro significado de democracia que compreende formas de
regime político como as dos países socialistas ou dos países do Terceiro Mundo,
especialmente, dos países africanos, onde não vigoram ou não são respeitadas
mesmo quando vigoram algumas ou todas as regras que fazem que sejam
democráticos, já depois de longa tradição, os regimes liberais-democráticos e os
regimes sociais-democráticos. Para evitar a confusão entre dois significados tão
diversos do mesmo termo prevaleceu o uso de se especificar o conceito genérico de
democracia como um atributo qualificante e, assim, chama-se de "formal" a
primeira e de "substancial" a segunda. Chama-se formal à primeira porque é
caracterizada pelos chamados "comportamentos universais" (universali
procedurali), mediante o emprego dos quais podem ser tomadas decisões de
conteúdo diverso (como mostra a co-presença de regimes liberais e democráticos ao
lado dos regimes socialistas e democráticos). Chama-se substancial à segunda
porque faz referência prevalentemente a certos conteúdos inspirados em ideais
característicos da tradição do pensamento democrático, com relevo para o
igualitarismo. Segundo uma velha fórmula que considera a democracia como
Governo do povo para o povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a
substancial é mais um Governo para o povo. Como a democracia formal pode
favorecer uma minoria restrita de detentores do poder econômico e, portanto, não
ser um poder para o povo, embora seja um Governo do povo, assim uma ditadura
política pode favorecer em períodos de transformação revolucionária, quando não
existem condições para o exercício de uma democracia formal, a classe mais
numerosa dos cidadãos, e ser, portanto, um Governo para o povo, embora não seja
um Governo do povo. Também foi observado (Macpherson) que o conceito de
democracia atribuído aos Estados socialistas e aos Estados do Terceiro Mundo
espelha mais fielmente o significado aristotélico antigo de democracia. Segundo
esse conceito, a democracia é o Governo dos pobres contra os ricos, isto é, é um
Estado de classe, e tratando-se da classe dos pobres, é o Governo da classe mais
numerosa ou da maioria (e é essa a razão pela qual a democracia foi mais execrada
do que exaltada no decurso dos séculos).
Para quem como Macpherson defende o fato de o discurso em torno da democracia
não se resolver em definir e redefinir uma palavra que pelo seu significado eulógico
é referida a coisas diferentes, o negócio deve ser determinado em torno de um
conceito geral de democracia dividido em species. Uma dessas espécies seria a
democracia liberal; a outra, a democracia dos países socialistas e assim por diante.
Por outro lado, porém, fica a dificuldade de achar o que é que essas duas espécies
têm de comum. A resposta extremamente genérica que esse autor foi constrangido a
dar, segundo o qual as três espécies de democracia têm em comum o escopo último,
que é o de "prover as condições para o pleno e livre desenvolvimento das
capacidades humanas essenciais de todos os membros da sociedade" (p. 37), mostra
a inutilidade da tentativa. Para não nos perdermos em discussões inconcludentes é
necessário reconhecer que nas duas expressões "democracia formal" e "democracia
substancial", o termo democracia tem dois significados nitidamente distintos. A
primeira indica um certo número de meios que são precisamente as regras de
comportamento anteriormente descritas independentemente da consideração dos
fins. A segunda indica um certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da
igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para
os alcançar. Uma vez que na longa história da teoria democrática se entrecruzam
motivos de métodos e motivos ideais, que se encontram perfeitamente fundidos na
teoria de Rousseau segundo a qual o ideal igualitário que a inspira (democracia
como valor) se realiza somente na formação da vontade geral (democracia como
método), ambos os significados de democracia são legítimos historicamente. Mas a
legitimidade histórica do seu uso não autoriza nenhuma ilação sobre a
eventualidade de terem um elemento conotativo comum. Dessa falta de um
elemento conotativo comum é prova a esterilidade do debate entre fautores das
democracias liberais e fautores das democracias populares sobre a maior ou a menor
democraticidade dos respectivos regimes. Os dois tipos de regime são democráticos
segundo o significado de democracia escolhido pelo defensor e não é democrático
segundo o significado escolhido pelo adversário. O único ponto sobre o qual uns e
outros poderiam convir é que a democracia perfeita – que até agora não foi
realizada em nenhuma parte do mundo, sendo utópica, portanto – deveria ser
simultaneamente formal e substancial.
BIBLIOGRAFIA
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BURDEAU, G., La democrazia (1956), trad. ital., Comunità, Milano, 1964.
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VENTURI, F., Utopia e riforma nell'illuminismo, Einaudi, Torino, 1970.
[Norberto Bobbio]
Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília

20/05 - Democracia27/05 - Liberalismo
03/06 - Liberalismo

DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Liberalismo
I. Uma definição difícil. A definição de Liberalismo como fenômeno histórico
oferece dificuldades específicas, a menos que queiramos cair numa história paralela
dos diversos Liberalismos (G. De Ruggiero, M. Cranston) ou descobrir um
Liberalismo "ecumênico" (T. P. Neill), que não têm muito a ver com a história. A
razão da inexistência de consenso quanto a uma definição comum, quer entre os
historiadores, quer entre os estudiosos de política, é devida a uma tríplice ordem de
motivos.
Em primeiro lugar, a história do Liberalismo acha-se intimamente ligada à história
da democracia; é, pois, difícil chegar a um consenso acerca do que existe de liberal
e do que existe de democrático nas atuais democracias liberais: se fatualmente uma
distinção se torna difícil, visto a democracia ter realizado uma transformação mais
quantitativa do que qualitativa do Estado liberal, do ponto de vista lógico essa
distinção permanece necessária, porque o Liberalismo é justamente o critério que
distingue a democracia liberal das democracias não-liberais (plebiscitária, populista,
totalitária). Em segundo lugar, o Liberalismo se manifesta nos diferentes países em
tempos históricos bastante diversos, conforme seu grau de desenvolvimento; daí ser
difícil individualizar, no plano sincrônico, o momento liberal capaz de unificar
histórias diferentes. Com efeito, enquanto na Inglaterra se manifesta abertamente
com a Revolução Gloriosa de 1688–1689, na maior parte dos países da Europa
continental é um fenômeno do século XIX, tanto que podemos identificar a
revolução russa de 1905 como a última revolução liberal. Em terceiro lugar, nem é
possível falar numa "história-difusão" do Liberalismo, embora o modelo da
evolução política inglesa tenha exercido uma influência determinante, superior à
exercida pelas Constituições francesas da época revolucionária. Isto porque,
conforme os diferentes países, que tinham diversas tradições culturais e diversas
estruturas de poder, o Liberalismo defrontou-se com problemas políticos
específicos, cuja solução determinou sua fisionomia e definiu seus conteúdos, que
muitas vezes são apenas uma variável secundária com relação à essência do
Liberalismo. Acrescente-se uma certa indefinição quanto aos referenciais históricos
do termo Liberalismo: tal termo pode, conforme o caso, indicar um partido ou um
movimento político, uma ideologia política ou uma metapolítica (ou uma ética),
uma estrutura institucional específica ou a reflexão política por ela estimulada para
promover uma ordem política melhor, justamente a ordem liberal.
Num primeiro momento, é possível oferecer unicamente uma definição bastante
genérica: o Liberalismo é um fenômeno histórico que se manifesta na Idade
Moderna e que tem seu baricentro na Europa (ou na área atlântica), embora tenha
exercido notável influência nos países que sentiram mais fortemente essa
hegemonia cultural (Austrália, América Latina e, em parte, a Índia e o Japão). Com
efeito, na era da descolonização, o Liberalismo é a menos exportada ou exportável
entre as ideologias nascidas na Europa, como a democracia, o nacionalismo, o
socialismo, o catolicismo social, que tiveram um enorme sucesso nos países do
Terceiro Mundo. É a única, entre as várias ideologias européias, que não consegue
realizar seu potencial cosmopolita, que é comum também à democracia e ao
socialismo. Nisto, talvez, seja possível encontrar, em sentido negativo, um critério
para dar uma definição do Liberalismo.
Uma definição mais consistente do Liberalismo precisa ter necessariamente como
ponto de partida o exame da melhor literatura existente, com o objetivo de verificar
a validade e os limites dos respectivos enfoques. Somente após termos verificado a
pouca utilidade dos dois enfoques mais radicais, o do historiador e o do filósofo,
cujas definições abrangem respectivamente pouco demais ou muito demais (§§ II,
III), e após termos evidenciado alguns "preconceitos" que encontramos em algumas
interpretações históricas de amplo alcance (§§ IV, V), é que procuraremos oferecer
uma definição do Liberalismo (§ VI), para ver se o mesmo é uma teoria críticoempírica
atual, ou se já pertence definitivamente ao passado e não é nada mais do
que uma "experiência" definitivamente acabada (§ VII).
II. O adjetivo liberal. Para o historiador, é óbvio e natural pensar que a única e
possível definição de Liberalismo é a definição histórica, visto estar ele convicto de
que a sua essência coincide com a sua história: o Liberalismo é um fato histórico,
isto é, um conjunto de ações e de pensamentos, ocorridos num determinado
momento da história européia e americana. Todavia, é possível encontrar diversas
definições históricas. Tomemos como ponto de partida o uso, ao nível
historiográfico, do adjetivo liberal; ele foi usado de uma forma meramente
receptiva, refletindo todos aqueles conteúdos que carregam a marca de liberal, ou,
de uma forma explicativa, como um critério para entender um período ou uma
época histórica. Contemporaneamente tem sido utilizado em níveis de indagação
bastante diversos, que se relacionam com diferentes disciplinas: para descrever as
orientações dos movimentos e dos partidos políticos que se definem liberais, para
catalogar numa história do pensamento político as idéias liberais, para caracterizar
do ponto de vista tipológico o Estado liberal entre as outras formas de Estado, para
perceber, em nível filosófico, o caráter peculiar da civilização ocidental.
Entre as muitas definições históricas, que utilizam o adjetivo liberal, existe em
primeiro lugar a do historiador puro, tendo como ponto de partida o uso político do
termo "liberal", que é do século XIX (antes, na linguagem comum, o termo indicava
uma atitude aberta, tolerante e/ou generosa, ou as profissões exercidas pelos
homens livres). De fato, tal termo aparece, primeiro, na proclamação de Napoleão
(18 Brumário), entrando, depois, definitivamente, na linguagem política através das
cortes de Cadiz, em 1812, para determinar o partido que defendia as liberdades
públicas contra o partido servil, e, na literatura, através de Chateaubriand, Madame
de Staël e Sismondi, para indicar uma nova orientação ético-política em fase de
afirmação. O limite dessa definição está no fato de que o historiador, se não possuir
um critério logicamente definido acerca do que é liberal, acabará por confundir o
adjetivo com o substantivo, os liberais com o Liberalismo, em suma, incluirá – e
atribuirá – ao Liberalismo um vasto conjunto de atitudes políticas, enquanto o
substantivo define apenas algumas delas. A aceitação acrítica do termo liberal pode,
pois, conduzir a perigosas conseqüências, quer focalizando mais grupos ou partidos
que se autodefinem liberais, quer focalizando mais as idéias que se proclamam
liberais. Nesse nível de ingenuidade, a história do Liberalismo europeu se revela
uma história extremamente confusa: temos inúmeros liberais diferentes entre si,
mas não o Liberalismo.
Trata-se, também, de uma definição arriscada, inclusive porque nem sempre grupos
e partidos que se inspiravam nas idéias liberais tomaram o nome de liberais, e
também nem sempre os partidos liberais desenvolveram uma política coerente com
os princípios proclamados. O mapa dos agrupamentos de movimentos ou de
partidos liberais no século XIX e no século XX apresenta inúmeros espaços vazios;
o que não significa que nestes países inexistiam idéias liberais. Além disso, ontem
como hoje, os diferentes partidos com o nome e com as idéias liberais ocuparam
nos agrupamentos parlamentares posições bastante diversificadas: conservadoras,
centristas, moderadas, progressistas.
Ainda hoje a palavra liberal assume diferentes conotações conforme os diversos
países: em alguns países (Inglaterra, Alemanha), indica um posicionamento de
centro, capaz de mediar conservadorismo e progressismo, em outros (Estados
Unidos), um radicalismo de esquerda defensor agressivo de velhas e novas
liberdades civis, em outros, ainda (Itália), indica os que procuram manter a livre
iniciativa econômica e a propriedade particular. Por isso, um destacado pensador
liberal (F. A. Hayek) propôs renunciar ao uso de uma palavra tão equívoca. Apesar
disso, os diferentes partidos liberais buscaram, neste século, formas de integração,
num primeiro momento através de L'entente internationale des partis radicaux et
des partis democratiques similaires, fundada em Genebra no ano de 1924, em
seguida, através da Internacional liberal, fundada em Oxford no ano de 1947; hoje,
no Parlamento europeu, acham-se federados no grupo liberal e democrático.
Muitas vezes, porém, grupos e partidos não usam o adjetivo liberal isoladamente;
no século XIX foram-lhe acrescentados outros termos políticos que, às vezes,
acabavam na negação ou na limitação de seu próprio conteúdo. Temos assim os
monárquico-liberais que, na firme defesa do ideal monarquista, admitiam formas
limitadas de representação política; os liberal-nacionais que, por identificarem a
causa nacional com a liberal, perdiam freqüentemente o significado liberal de uma
organização federativa ou subordinavam a liberdade à unidade nacional; os
católicos (ou os protestantes) liberais que, contra os clericais antiliberais e os
anticlericais (às vezes liberais), defendiam a separação entre Igreja e Estado; os
liberal-democratas que, contra uma visão limitativa do Liberalismo, encarado como
mera garantia dos direitos individuais, salientavam o momento da participação
democrática na direção política, do país; e, por último, os livre-cambistas liberais
que, contrariamente aos liberal-estatalistas, defendiam a total não-intervenção do
Governo no mercado interno e em suas relações com o mercado internacional
(antiprotecionismo). Alguns desses conteúdos, como a fé monárquica, o ideal
nacional, o privilegiamento exclusivo do laissez-faire, laissez-passer, não servem
mais para caracterizar o Liberalismo de hoje; outros, ao contrário, tomaram maior
consistência, como a indissolúvel relação entre Liberalismo e democracia ou a
redescoberta da função da religião como antídoto contra o materialismo da
sociedade opulenta.
Como já dissemos, mesmo ao nível das idéias, o termo liberal se revela ambíguo:
muitas vezes isto se deve ao fato de o termo ser usado em contextos disciplinares
bastante diversos entre si. Temos, assim, um Liberalismo jurídico, que se preocupa
principalmente com uma determinada organização do Estado capaz de garantir os
direitos do indivíduo, um Liberalismo muitas vezes propenso a transformar suas
próprias soluções particulares em fins absolutos (ver, por exemplo, a luta dos
liberais franceses na época da Restauração, presos aos princípios das garantias
individuais, contra os democratas; ou a teoria alemã do Rechtsstaat, ou a volta ao
Estatuto pedida por Sonnino em 1897). Temos, em seguida, um Liberalismo
político, onde se manifesta com mais força o sentido da luta política parlamentar:
resume-se no princípio do "justo meio" como autêntica expressão de uma arte de
governar capaz de promover a inovação, nunca, porém, a revolução. Apesar disso,
na sua atuação concreta, essa arte de governar oscilou constantemente entre o
simples comprometimento parlamentar, objetivando manter inalterados os
equilíbrios existentes, e a capacidade de uma síntese criadora entre conservação e
inovação, capaz de libertar e mobilizar novas energias. Foi essa política que causou
a passagem da monarquia constitucional para a parlamentar, embora o liberal não
tenha sido por princípio um republicano; ou o encontro entre Liberalismo e
democracia, embora as resistências tenham sido notáveis, devido às lembranças da
experiência jacobina ou ao medo dos clericais e dos socialistas. Temos, enfim, um
Liberalismo econômico, intimamente ligado à escola de Manchester: esse
Liberalismo, muitas vezes, por acreditar que o máximo de felicidade comum
dependeria da livre busca de cada indivíduo da própria felicidade, não pesou
suficientemente os custos que tal teoria acarretava em termos de liberdades civis e
esqueceu que a felicidade tinha sido o objetivo, também, dos Estados absolutistas.
Outro motivo que torna difícil o uso do termo liberal no campo da história das
idéias é a diversidade das estruturas socioinstitucionais em que as mesmas se
manifestam. De acordo com a acepção do iluminismo francês (assumida
integralmente pelo pensamento reacionário ou católico do início do século XIX) e
do utilitarismo inglês, Liberalismo significa individualismo; por individualismo
entende-se, não apenas a defesa radical do indivíduo, único real protagonista da
vida ética e econômica contra o Estado e a sociedade, mas também a aversão à
existência de toda e qualquer sociedade intermediária entre o indivíduo e o Estado;
em conseqüência, no mercado político, bem como no mercado econômico, o
homem deve agir sozinho. Porém, em contextos socioinstitucionais diferentes, o
Liberalismo enfatizou o caráter orgânico do Estado, último elemento sintético de
uma série de associações particulares e naturais, fundamentadas no status; ou, em
outras ocasiões, reivindicou a necessidade de associações livres (partidos,
sindicatos, etc.), quer para estimular a participação política do cidadão, que o
individualismo (dos proprietários) pretendia reduzir à esfera da vida particular, quer
como proteção do indivíduo contra o Estado burocrático.
Esses contextos socioinstitucionais correspondem a diferentes formas de evolução
política e de modernização. Sinteticamente podemos esboçar três diferentes
posições, tendo como ponto de referência a sociedade civil. Onde, como na
Inglaterra, a sociedade veio se libertando, desde o século XVII, autonomamente, da
estrutura corporativista, o indivíduo se apresenta "naturalmente" inserido na
sociedade, e este espaço de liberdade individual é sempre visto como contraposição
ao Governo, considerado um mal necessário. Onde, como na França, a sociedade
mantém sua estrutura corporativista, a revolução, a fim de libertar o indivíduo,
apela para o Estado, portador da soberania popular, de tal forma que é rejeitada toda
e qualquer mediação entre o indivíduo e o Estado. Onde, como na Alemanha, uma
sociedade estruturada em classes demonstra ainda uma notável vitalidade, o
Liberalismo apresenta uma concepção orgânica do Estado que mantém – nem
dividida, nem contraposta, e sim como seu momento primeiro e necessário – a
sociedade civil, de quem se apresenta como verdade manifesta. Destas três posições
– associacionista, individualista e orgânica – após a Revolução Industrial
prevaleceu – conforme Tocqueville – a primeira, embora o Liberalismo continue
mostrando duas faces e duas estratégias: uma, que enfatiza a sociedade civil, como
espaço natural do livre desenvolvimento da individualidade, em oposição ao
Governo; outra, que vê no Estado, como portador da vontade comum, a garantia
política, em última instância, da liberdade individual.
Outro contraste, que predominou principalmente entre o fim do século XVIII e a
primeira metade do século XIX, discriminando o Liberalismo continental do inglês,
foi provocado pelos diferentes contextos culturais em que atuam os liberais, isto é,
pela específica filosofia de ação que serve de suporte a seu agir, de forma que temos
um Liberalismo ético e um Liberalismo utilitarístico. Ambas as concepções
rompem ou se encontram em ruptura potencial com a formulação específica do
individualismo, oferecida pela filosofia do direito natural e do contrato; ambas
colocam a realização dos direitos do homem como fim absoluto: diferem, porém,
radicalmente, na medida em que o Liberalismo ético tem sua origem – através de
Kant e Constant – em Rousseau, enquanto o Liberalismo utilitarístico – através de J.
Bentham e James Mill – a tem em Hobbes. Para o Liberalismo utilitarístico, o
desejo da própria satisfação é o único móvel do indivíduo: a fé na possibilidade de
harmonizar os interesses particulares egoístas ou de fazer coincidir a utilidade
particular com a pública foi possível mediante a aplicação, por analogia, à política
dos conceitos formulados para a economia pelos liberais Adam Smith e Ricardo,
isto é, os de mercado e de utilidade. Estruturas políticas que maximizassem o
mercado político, estendendo o cálculo utilitário ao maior número possível de
pessoas, e tornassem os governantes dependentes das leis do mercado, através de
eleições freqüentes, iriam possibilitar a máxima felicidade para o maior número de
pessoas. O Liberalismo utilitarístico, porém, foi supervalorizado pelo inegável peso
que teve no radicalismo inglês, no movimento em favor das reformas jurídicas,
econômicas e eleitorais das primeiras décadas do século; tudo não passa, porém, de
um parêntese, visto que desde John Stuart Mill é enfatizado o Liberalismo ético,
que caracterizará todo o sucessivo Liberalismo inglês.
Concluindo esse esboço acerca dos grupos ou partidos liberais, bem como acerca
das idéias ou filosofias liberais, é apenas possível afirmar que o único denominador
comum entre posições tão diferentes consiste na defesa do Estado liberal, nascido
antes de o termo liberal entrar no uso político: um Estado tem a finalidade de
garantir os direitos do indivíduo contra o poder político e, para atingir essa
finalidade, exige formas, mais ou menos amplas, de representação política.
No âmbito do enfoque histórico, o adjetivo liberal é usado para oferecer uma
definição mais globalizante, explicativa e não-descritiva: fala-se numa "era liberal",
que começa com a Restauração (1815) e termina, ou com as revoluções
democráticas de 1848, ou com a modificação do clima ético-político após 1870,
quando começam a predominar a Realpolitik, o nacionalismo e o imperialismo, na
política; o hedonismo, o materialismo e a irracionalidade, na ética (Croce); ou com
a Primeira Guerra Mundial e a crise do contexto liberal que a ela se seguiu (De
Ruggiero, Laski). Fala-se numa era liberal, não apenas porque neste período tomase
consciência da liberdade como valor supremo da vida individual e social, mas
também porque a liberdade é a categoria geradora que explica todo um conjunto de
comportamentos políticos e sociais intimamente relacionados entre si. Mesmo
voltando aos grandes princípios da Revolução Francesa, a atmosfera cultural achase
modificada radicalmente: ao iluminismo, com sua fé exclusiva na razão contra a
história, opõe-se o historicismo e sua nova concepção de individualidade,
considerada como algo associal ou abstrato, mas como algo sempre determinado
historicamente. Justamente por causa de seu sentido do concreto e do real, o
historicismo liberal, considerando ser possível fazer uma nova história unicamente
sem romper totalmente com o passado, se coloca a favor das reformas e não da
revolução: mesmo chegando a aceitar esta última numa situação de necessidade, o
Liberalismo rejeita o mito da revolução-libertação, próprio dos democratas e dos
socialistas.
A individualidade, quer do indivíduo particular quer da nação, tem o direito à livre
manifestação, com vista a uma maior elevação moral dos homens e dos povos. Uma
liberdade encarada dessa maneira provoca, em todos os segmentos da sociedade,
conseqüências tais que são capazes de modificar rapidamente a face da Europa: na
vida econômica, a ruptura dos laços corporativos e dos privilégios feudais
possibilita a arrancada econômica, acompanhada por um fenômeno novo, o
associacionismo (quer para o progresso econômico, quer para a ajuda mútua); no
campo político, forma-se uma opinião pública esclarecida que, pela livre discussão,
exerce controle sobre o Governo; em todos os campos da vida social, política e
cultural, a luta se dá contra a opressão clerical pela abolição da mão-morta e do foro
eclesiástico e pela laicidade do Estado e do ensino; e, enfim, luta-se contra as
monarquias absolutas, a fim de se conseguir Constituições, instituições
representativas, responsabilidade de Governo, em outras palavras, novas
instituições que, muitas vezes, não passam de um compromisso entre absolutismo e
revolução, monarquia e soberania popular. Esse compromisso, sob a pressão das
forças democráticas, se revela prejudicial à monarquia, mesmo se do antigo Estado
absolutista permanecem as grandes estruturas, como a burocracia e o exército
permanente. O mesmo vale a respeito da nação: o princípio liberal de nacionalidade
postulava, ao mesmo tempo, a unidade da nação, quando dividida em Estados
diferentes, sua independência, quando submetida à dominação de um Estado
estrangeiro, e sua liberdade, isto é, aquelas estruturas institucionais que
possibilitassem sua livre expressão e o exercício, no contexto europeu, de sua
missão específica. O Estado nacional, apto para proporcionar expressão política ao
espírito da nação, se configura como a característica sintética da era liberal.
É difícil concordar plenamente com essa redução do Liberalismo a ideologia básica
da era liberal. Com efeito, na Europa da Restauração, essa época não surgiu por
acaso: ela teve não apenas um prólogo, ao nível das idéias (por exemplo: o
indivíduo como fim), no contexto cultural da Europa moderna, a partir do
humanismo, mas principalmente herdou o Estado liberal, definido aos poucos pela
tradição multissecular da Inglaterra ou pela experiência revolucionária dos Estados
Unidos e da França. Terminada a era liberal, após a extensão do sufrágio eleitoral e
o conseqüente nascimento dos partidos de massa – com ideologias, muitas vezes,
anti ou aliberais –, mesmo assim o Estado liberal (no que ele tem de específico) não
desapareceu, ao contrário, continua ainda na forma liberal-democrática. Talvez por
esses motivos, por estar demasiadamente enraizado na "específica" história da
Europa, o Liberalismo se configura como um ideal e uma estrutura política de
difícil exportação.
É necessário, portanto, utilizar outra ótica, que focalize não apenas os grupos ou as
idéias ou a era liberal, e sim o Estado liberal, passando das partes para o todo. Se os
liberais tiveram perto de si reacionários e revolucionários, autoritários e
democratas, clericais e socialistas, o Estado liberal demonstrou uma continuidade
surpreendente e uma capacidade de acomodação às situações históricas novas e de
sobrevivência diante do totalitarismo, que parece acabar em definitivo com a
experiência liberal européia. Em outras palavras, não podemos olhar para o
Liberalismo como sendo uma simples ideologia política de um partido, mas como
uma idéia encarnada em instituições políticas e em estruturas sociais. Todas as
grandes ideologias do século XIX – a democrática, a nacionalista, a católica (nos
seus aspectos reacionário ou social), a socialista – na medida em que se afastaram
explicitamente do Liberalismo, buscaram a edificação de uma outra forma de
Estado que, conforme a matriz ideológica, poderia ser um Estado autoritário ou uma
democracia populista ou totalitária.
III. O substantivo liberdade. Se a reconstrução do mapa dos diferentes partidos ou
movimentos liberais do século XIX não nos possibilita chegar a uma satisfatória
definição de Liberalismo, talvez seja útil tentar o caminho contrário, buscando
identificar aquele valor de que os liberais, pelo seu próprio nome, se proclamam
arautos, isto é, o de "liberdade". De uma definição histórico-empírica, passamos
assim para uma definição essencialmente teórica, do adjetivo para o substantivo.
Neste campo, não interessa o antigo problema do livre-arbítrio; também desperta
um interesse apenas marginal, devido a suas simplificações políticas, o fato de o
homem, pela sua própria natureza, estar sujeito à lei de causalidade, e ser,
conseqüentemente, objeto de estudo por parte da biologia, da antropologia e da
psicologia. Nada disso interessa, uma vez que, do ponto de vista científico ou
experimental, a liberdade não pode ser demonstrada, assim como não pode ser
demonstrado seu contrário. Ocupar-nos-emos, pois, da liberdade unicamente em
relação ao agir humano (e, portanto, também à política) e não da liberdade interior,
com fundamento nas três principais definições dadas pelo pensamento políticofilosófico
moderno acerca do agir livre: a liberdade natural, a racional e a
libertadora.
Antes de tudo, é útil considerar a concepção naturalística da liberdade: o homem é
verdadeiramente livre quando pode fazer tudo aquilo que o satisfaz. Trata-se de
uma concepção naturalística, na medida em que o agir humano segue ou obedece
aos próprios instintos ou apetites ocasionais; porém, para conseguir satisfazer os
próprios desejos, e, portanto, para ser livre, o homem precisa não encontrar
obstáculos e, quando eventualmente os encontrar, precisa possuir também a força
(ou o poder) para coagir e subordinar os outros homens. Temos aqui uma liberdade
que implica, pois, a desigualdade. Se a liberdade coincide com o poder, quem tem
maior quantidade de poder será mais livre: paradoxalmente, o homem
verdadeiramente livre é o déspota.
Esse tipo de liberdade foi descrito por Hobbes, quando definiu a condição do
homem no estado natural, ou por Freud, quando colocou no princípio do prazer o
instinto constitutivo da natureza humana. Todavia, contratualistas e psicanalistas
concordam em evidenciar a desproporção existente entre necessidades e instintos,
por um lado, e os meios e recursos para satisfazê-los, por outro, visto estes últimos
serem de fato escassos e limitados. Nasce, assim, a política entendida como poder
decisório quanto à distribuição desses meios e desses recursos: o homem, não tendo
condições para tudo possuir, consegue pelo menos algo, dobrando-se à autoridade
ou ao princípio de realidade. Em outras palavras, em todos os grupos sociais que
tenham um mínimo de organização, a liberdade dos indivíduos, para fazerem o que
mais lhes apetece, é mais ou menos limitada, conforme a opinião das classes
dominantes acerca da nocividade social desta ou daquela liberdade natural.
Precisamos, neste ponto, passar para outra definição da liberdade, radicalmente
contrária à que tem seu ponto de partida na liberdade natural e chega a identificar a
liberdade com a força. Essa contrapõe a verdadeira liberdade ao arbítrio do
indivíduo, que não é livre no imediatismo e espontaneidade de agir, mas pode
tornar-se livre na medida em que busca adequar-se a uma ordem necessária e
objetiva onde se encontra a essência da verdadeira liberdade. Em lugar de "posso
(ser livre), porque quero e porque tenho o poder para agir", afirma-se "posso,
porque devo, e devo na medida em que, enquanto homem, participo de uma ordem
racional". O instrumento de liberdade é, pois, o conhecimento, isto é, algo
radicalmente contrário ao instinto, assim como o homem no Estado natural é o
oposto do homem racional que vive em sociedade. A verdadeira liberdade se
manifesta, pois, como consciência da necessidade racional.
É difícil sintetizar em que consiste essa ordem e, portanto, essa liberdade, uma vez
que as respostas variam conforme os diferentes pensadores. Resumidamente,
podemos indicar duas orientações bastante diferentes: uma que enfatiza o homem
principalmente na sua dimensão antropológica, às vezes até numa ordem cósmica
global, e outra que o encara na sua dimensão social. A primeira apresenta apenas
um interesse marginal: é a encontrada na filosofia helenística, em Spinoza e em
Freud; segundo essa orientação, o homem se torna livre na medida em que
identifica e domina suas paixões e seus instintos. É possível abster-se daquilo que o
indivíduo não tem condições de dominar; é necessário acomodar-se àquelas
necessidades que correspondem a uma ordem cósmica; é necessário elevar ao nível
da consciência a vida instintiva através da auto-análise.
A segunda orientação, e que se propõe focalizar a posição do homem na ordem
social, define a liberdade de maneira estática (nos séculos XVII e XVIII) ou de
maneira dinâmica (no século XIX): no período que vai entre a primeira e a segunda
definição, encontramos a teoria do Estado e a filosofia da história, de Hegel. Para os
primeiros (Hobbes, Spinoza, Rousseau), a verdadeira liberdade existe unicamente
no Estado (absoluto ou democrático) que, ao mesmo tempo, concretiza a ordem e se
faz portador de um valor ético, uma vez que, no momento do Estado, o egoísmo do
indivíduo é abafado e superado numa vontade mais elevada ou maior que abrange
em si também o alter ou o socius. Para os segundos (Marx e Comte), a verdadeira
liberdade consiste na consciência dos caminhos da história e no agir conseqüente
para realização de sua finalidade imanente, uma sociedade sem classes ou a ordem
social planificada pela ciência. Enquanto a liberdade natural é sempre liberdade do
Estado, essa, ao contrário, é liberdade no Estado (ou na classe ou na ordem
descoberta pela ciência).
Temos, enfim, uma terceira definição de liberdade que, de maneiras diferentes,
participa da primeira e da segunda. Com efeito, por um lado, enfatiza o fato de a
verdadeira liberdade não consistir na espontaneidade natural, e sim na emancipação
ética do homem; todavia, por outro lado, afirma não existir um critério objetivo e
necessário para determinar o que vem a ser o bem e o mal, nem, tampouco, um
poder (a Igreja, o Estado, a classe, o partido, a ciência) que seja o intérprete e o
executor desse critério. Em outras palavras, a verdadeira liberdade consiste na
possibilidade situacional que o homem tem para escolher, manifestar e difundir seus
valores, morais ou políticos, a fim de realizar a si próprio.
Falou-se em possibilidade situacional porque, para ser livre, duas condições
precisas têm que ocorrer. Por um lado, é preciso maximizar as possibilidades
objetivas de opção num sistema político e num contexto social que assegurem um
real pluralismo para as vocações e as profissões: não é de fato livre quem se acha
forçado a escolher entre aceitar ou rejeitar, entre a presença ou o silêncio; além
disso, uma sociedade é tanto mais livre quanto menor é a distância entre as
vocações e as profissões. Por outro lado, é preciso, também, minimizar os
condicionamentos (internos e externos) que podem atuar sobre os motivos e os
móveis da ação. Retomando alguns temas focalizados superficialmente neste
parágrafo, é preciso lembrar que não apenas os processos normais de socialização (a
partir da educação até os mass media), mas também a psicologia e a biologia,
utilizados instrumentalmente pelo poder político, podem condicionar as opções
individuais. Além disso, os indivíduos, mesmo sem esses condicionamentos, para
serem livres, precisam, mediante o conhecimento, dominar os próprios instintos e as
próprias paixões.
Nesta terceira definição, passamos necessariamente de uma "liberdade de autoemancipação
ou de realização de si próprio" para uma "liberdade dos
condicionamentos externos e internos". A liberdade de fazer supõe assim a
liberdade de poder fazer: sublinhamos a palavra poder justamente porque ela
permanece, de alguma maneira, relacionada com a liberdade, visto que a liberdade
de querer supõe, ao nível da ação, algumas garantias, isto é, ausência de
impedimentos e condicionamentos externos e internos e, portanto, uma
possibilidade de poder. Em outras palavras, exige a existência de um espaço público
que possibilite e garanta, ao mesmo tempo, a livre manifestação das faculdades
humanas, bem como a dos processos políticos e sociais. Esta passagem necessária
não implica, porém, que a liberdade venha a ser um status política e socialmente
garantido; ela nada mais é do que uma condição ou um pré-requisito para a possível
manifestação da liberdade, para a emancipação ou a realização do homem, sempre
na dependência de uma opção ou, melhor ainda, de uma sua ação. Neste sentido,
entende-se por ação livre aquela que tem condições para chamar à existência o que
não existia, quebrando, dessa forma, os processos histórico-sociais que, pela
repetição passiva das finalidades da ação, correm o risco de se tornar automáticos e
cristalizados. Precisamos, ainda, definir se o espaço onde essa liberdade se
manifesta é um espaço essencialmente particular, que possibilita ao homem
testemunhar seus valores morais, ou se é espaço "político", para contribuir na
definição de opções visando qualidade de vida.
Essas definições da palavra liberdade trazem pouca ajuda para identificar o
fenômeno histórico do Liberalismo, visto serem por demais abrangentes. Podemos,
de fato, resumir nessas três definições toda a história da moderna filosofia política;
bem como poderíamos resumir nelas todas aquelas formas de organização do poder
que nada têm de liberal, da absolutista para a democrática (pura) e à socialista
(soviética). A análise feita até este ponto, pode, todavia, ter utilidade se nos
perguntarmos qual é a resposta dos pensadores, normalmente considerados
"liberais", ao problema destas três liberdades: a liberdade natural, a liberdade na
ordem racional e a liberdade como auto-emancipação.
Nenhum pensador liberal se opõe a que o Estado limite a liberdade natural ou o
espaço de arbítrio de cada indivíduo. Isto, porém, com duas condições bem
definidas: a primeira consiste na preocupação de conciliar o máximo espaço de
arbítrio individual (o homem contra o Estado repressivo) com a coexistência dos
arbítrios alheios, com base num princípio de igualdade jurídica; a segunda impõe
que, para limitar a liberdade natural, deve ser utilizado, como instrumento, o direito
– a norma jurídica geral válida para todos –, um direito que seja expressão de um
querer comum (Kant). Em suma, a decisão acerca da nocividade, ou não, desta ou
daquela liberdade natural, bem como o conseqüente controle social levado a efeito
pelo direito, deve ser uma resposta à opinião pública e às formas institucionais,
mediante as quais a mesma se organiza.
Historicamente, os pensadores liberais defenderam, contra o Estado, duas
liberdades naturais. Na época do capitalismo nascente, lutaram a favor da liberdade
econômica: o Estado não deveria se intrometer no livre jogo do mercado que, sob
determinados aspectos, era visto como um Estado natural, ou melhor, como uma
sociedade civil, fundamentada em contratos entre particulares. Aceitava-se o Estado
somente na figura de guardião, deixando total liberdade (laissez-faire, laissezpasser)
na composição dos conflitos entre empregados e empregadores, ao poder
contratual das partes; nos conflitos entre as diferentes empresas (no âmbito
nacional, assim como no supranacional), ao poder de superação da concorrência que
sempre recompensa o melhor. No período pós-industrial e tecnológico, foi
reivindicada, pela esquerda, a liberdade sexual, bem como a do uso de drogas
contra as inibições de uma moral julgada, ao mesmo tempo, cristã e burguesa,
sacramental e ligada ao sistema produtivo, para alcançar a ressurreição terrena da
carne.
De forma diferente, ambas são liberdades naturais, que privilegiam o mais
poderoso, quer no mercado, quer na busca do prazer; conseqüentemente, essas
liberdades acabam por gerar conflitos e violência, bem como uma diminuição de
tutela jurídica, tarefa natural em função da qual se formou o Estado moderno.
Muitos pensadores liberais, porém, sempre aceitaram uma dose mais ou menos
elevada de conflitos e de violência no âmbito do Estado, justamente a fim de
ampliar o espaço do arbítrio ou da liberdade natural do homem, nunca, porém,
renunciaram à intervenção, em última instância, do Governo como poder de
julgamento entre as partes em luta (mediação nas questões trabalhistas,
protecionismo, leis contra os monopólios), ou como órgão defensor das posições
mais fracas (salvaguarda dos direitos civis, reforma do direito de família, dando
particular atenção aos menores e à situação da mulher, luta contra as drogas
pesadas).
Pelo contrário, os liberais foram abertamente contra o princípio de liberdade no
Estado, no caso deste princípio não ser entendido unicamente como de liberdade
política, isto é, como participação na definição das orientações políticas do
Governo, enquanto reivindicam plena liberdade social (de palavra, de reunião, de
associação, de imprensa, de empresa) em relação ao Estado. Os liberais, com
exceção dos que se inspiraram na filosofia de Rousseau ou de Hegel, nunca
acreditaram que a vontade geral, manifestada pelo Estado, fosse qualitativamente
diferente do somatório ou, melhor, da agregação, fruto de compromissos, das
vontades particulares de indivíduos e de grupos. Além disso, sempre combateram a
afirmação de que o Estado, como concreta universalidade, é o portador e o
concretizador do valor ético, a que deve se reduzir substancialmente a vida do
indivíduo, por ser o Estado visto, por um lado, como Governo (isto é, como uma
parte em relação a um todo, que é a sociedade) e, por outro lado, como simples
organização política e jurídica da força, que, para o liberal, precisa buscar no
consenso a própria legitimidade.
O pensador liberal, porém, embora seus ideais se oponham a quem pensa existir
uma ordem necessária e objetiva da qual alguém seja o intérprete e o fiador, sentese
forçado a aceitar a idéia de um bem absoluto, que é justamente o Estado liberal.
Continua sendo um bem absoluto, embora retirado do campo da ética (liberdade
interior) e submetido ao campo do direito (liberdade exterior), embora o Estado
liberal tenha que ser moralmente neutro e só possa permitir uma organização da
sociedade em que cada indivíduo e cada grupo social tenha condições para
perseguir livremente seu próprio objetivo e escolher seu próprio destino, ou sua
própria maneira de ser no mundo, sem que ninguém (nem homens, nem grupos)
possa impedi-los, enfim, mesmo em se tratando de um Estado reduzido a um mero
procedimento político e jurídico. É um bem absoluto justamente porque pressupõe,
como valor, o indivíduo visto como fim e não como meio, o princípio do diálogo, a
superioridade da persuasão sobre a imposição, o respeito pelos outros, e, através
desse valor, a significação positiva das diferenças e da diversidade. Em síntese: o
Liberalismo absolutiza um método, não os fins.
O Estado liberal, como bem absoluto, não passa de um ideal limite ou orientador da
experiência política, uma vez que conflitos ou tensões, próprios de uma estrutura
pluralista, nem sempre são resolvidos pelo diálogo ou pela persuasão, ao contrário,
muitas vezes a força atua como fator decisivo; trata-se, porém, de uma força que
aceita uma regra jurídica; é melhor conferir do que quebrar a cabeça. Apesar,
porém, dessa tentativa para regulamentar o uso da força, é preciso reconhecer que
não foi eliminada a existência dos poderosos e dos fracos no mercado político e
social: a tentativa de legitimação da força, transformando-a em poder (legítimo),
nunca a elimina por completo, permanecendo de pé o Estado natural justamente nos
espaços não ocupados pela sociedade civil (por exemplo, o mercado econômico
assim como o mercado político).
A terceira definição de liberdade (liberdade como emancipação e auto-realização do
homem) parece captar a verdadeira liberdade liberal; precisamos, porém,
reconhecer que, nas teorizações efetuadas a respeito dessa definição, muitas vezes
prevalece o elemento ético (o de uma liberdade que poderia se desenvolver
unicamente na esfera particular) sobre o elemento político da gestão do poder:
dentro da visão mais ampla possível, poderíamos entendê-la como liberdade da
política, na medida em que, para alguém ser livre, basta que faça unicamente o que
está em seu poder. Vale lembrar que no Estado moderno existem fortes tendências
que levam a um máximo de não-politização e de neutralização do indivíduo no
campo de seu mundo particular e não-político
Esse Liberalismo ético corre o perigo de se apresentar como atitude aristocrática,
reivindicada por algumas elites, como política de intelectuais. A ausência do
momento especificamente político é explicada, em parte, pelo fato de tais
reivindicações emergirem, principalmente, durante períodos em que as estruturas
autoritárias do Estado não permitem atividades políticas, ou durante períodos em
que a mobilização totalitária dos indivíduos faz serem políticas todas as
manifestações da vida: basta lembrar a reivindicação de liberdade religiosa no
período do absolutismo ou a "religião da liberdade" de Croce na era dos
totalitarismos. O pensamento político liberal (com Locke, Montesquieu, Constant)
sempre reafirmou que a liberdade política, ou seja, a efetiva participação dos
cidadãos no Poder Legislativo, é, em última análise, a única verdadeira garantia de
todas as outras autônomas liberdades, enquanto Tocqueville achava que a
verdadeira instância ética liberal somente poderia se concretizar na atividade
política.
Mediante essa nova leitura, das três definições do conceito de liberdade auxiliados
pelos "clássicos" do Liberalismo, não conseguimos ainda defini-lo. Os resultados
obtidos através da reconstrução "histórica" do mapa dos movimentos e das idéias
liberais, bem como do exame "teórico" das diferentes definições de liberdade, nos
proporcionam, todavia, referenciais para examinar – sempre de forma crítica –
algumas definições históricas, bem amplas, do Liberalismo. Os referenciais são
proporcionados justamente por essas duas linhas convergentes que devem servir
para focalizar corretamente o Liberalismo: por um lado, um dado "duro" ou "frio", o
Estado liberal com seus mecanismos jurídicos e políticos; por outro lado, um dado
"flexível" ou "quente", a real evolução cultural, política e social que caracteriza a
emancipação humana de estruturas autoritárias e a ruptura dos automatismos dos
processos histórico-sociais, em outras palavras, os diferentes momentos liberais.
IV. Liberalismo e civilização moderna. Vamos examinar agora duas maneiras de
interpretação do Liberalismo e de ambos daremos a definição: a primeira,
"temporal", na medida em que se propõe a interpretar o espírito de uma época; a
segunda "estrutural", na medida em que se propõe a interpretar as estruturas, sejam
elas institucionais (o Estado) ou sociais (o mercado, a opinião pública). Uma vez
que avançamos tipologicamente, podemos afirmar que a primeira dominou a cultura
política no período entre as duas guerras, enquanto a segunda veio se definindo e
caracterizando neste após-guerra. Ambas, todavia, se situam no mesmo horizonte de
discurso: o Liberalismo é um fenômeno que caracteriza a Europa na Idade
Moderna. Essa afirmação é correta, quando o uso do adjetivo "moderno" é apenas
neutro e descritivo (após o século XVI): muitas vezes, porém, esse uso é altamente
valorativo (o bem após o mal), visto que o "moderno" tem um "valor". Esse enfoque
é bastante perigoso e acarreta graves riscos de não se compreender bem o
Liberalismo no plano histórico, riscos que procuraremos mostrar falando em três
"preconceitos": o filosófico (§ IV), o jurídico e o histórico (§ V).
Antes de tudo, precisamos observar que, se tudo aquilo que acontece no "moderno"
se acha positivamente relacionado com o Liberalismo, acabamos por transformar a
proximidade de processos históricos diferentes numa sua coincidência. Chegamos,
assim, muitas vezes a ter uma visão providencialista e triunfalista do Liberalismo,
visão que esquece a dureza de suas lutas, suas freqüentes derrotas e a diversidade de
suas estratégias, conforme as diferentes circunstâncias históricas. Enfim, perde-se
de vista os momentos liberais concretos para se ter um Liberalismo – pelo menos
até a segunda metade do século XIX – sempre no ápice da história: o Liberalismo,
na sua história mais autêntica, não coincidiu sempre com o Governo, visto ter-se
encontrado muitas vezes em posições de oposição radical, quando não até de
heresia.
Além disso, essa interpretação unitária do Liberalismo na Idade Moderna leva à
descrição de seu nascimento, de seu apogeu e de seu ocaso. Nas interpretações
temporais, mais otimistas, o Liberalismo encontrará sua plena verdade e sua
superação no socialismo, este também filho da modernidade (De Ruggiero e Laski).
Nas interpretações estruturais, mais pessimistas, o fim do Liberalismo será um
fenômeno de autodestruição e coincide com a "crise" da Europa (Habermas,
Koselleck); a verdadeira face do Liberalismo será evidenciada pelo seu rápido
modificar-se em fascismo (Marcuse, Horkheimer), como conseqüência da
transformação do mercado: seriam, em suma, duas formas de domínio "burguês"
(Kühnl). Com efeito, num primeiro momento, os capitalistas individualmente
operam no mercado, mediante a posse efetiva das propriedades particulares,
garantida por um Estado neutro; em seguida, porém, mediante o capitalismo
monopolístico ou o capitalismo de Estado, é eliminado todo e qualquer espaço de
liberdade e se envereda pelo caminho da sociedade global da pura dominação,
sociedade regida por uma razão que conta unicamente a grandeza e as coisas,
enquanto marginaliza a liberdade e a fantasia dos homens.
As interpretações temporais do Liberalismo, procurando definir seu espírito,
buscam todas o "prólogo no céu" das formas históricas do Liberalismo (De
Ruggiero, Laski). Esse espírito consiste na nova concepção do homem, que foi se
afirmando na Europa em ruptura com a Idade Média, e que teve, como suas etapas
essenciais, a Renascença, a Reforma e o racionalismo (de Descartes ao iluminismo).
A Renascença, pela sua concepção antropocêntrica em contraste com o dualismo
medieval, pela sua percepção orgulhosa e otimista de um mundo a ser inteiramente
conquistado, representa a primeira ruptura radical com a Idade Média, onde não
havia espaço cultural para a consciência do valor universal e criador da liberdade,
oferecida unicamente sob a forma de privilégios. Mais tarde, a Reforma protestante
– principalmente o calvinismo – traz a doutrina do livre exame, derruba o princípio
da necessidade de uma hierarquia eclesiástica como órgão de mediação entre o
homem e Deus, emancipando assim a consciência do indivíduo, ministro do Deus
verdadeiro, que pela ascese no mundo (e não fora dele) pode disciplinar
racionalmente toda a própria vida. Por analogia, com Descartes, há uma rejeição da
tradição; a razão encontra em si mesma seu ponto de partida, eliminando, pela
dúvida metódica e pelo espírito crítico, todo dogma e toda crença, confiante apenas
nos novos métodos empírico-analíticos da ciência. Essa revolução cultural
encontrará sua plenitude política no iluminismo, quando, em nome da razão, será
declarada guerra à tirania exercida sobre as consciências pelo Estado, pela Igreja,
pela escola, pelos mitos e pelas tradições; quando, enfim, será dado o ponto de
partida para a aplicação do espírito científico ao domínio da natureza e à
reestruturação da sociedade.
Tem sido este o longo processo histórico que levou o indivíduo a se sentir livre, a
ter plena consciência de si e de seu valor e a querer instaurar plenamente o regnum
hominis sobre a terra. As origens do Liberalismo coincidem, assim, com a própria
formação da "civilização moderna" (européia), que se constitui na vitória do
imanentismo sobre o transcendentalismo, a liberdade sobre a revelação, da razão
sobre a autoridade, da ciência sobre o mito.
O limite desta reconstrução temporal do Liberalismo está principalmente num
preconceito "filosófico", que leva a resultados não mais defensáveis, ao nível da
crítica histórica. Um fenômeno estritamente político, como o Liberalismo, é
interpretado, de acordo com esse enfoque, a partir da tradicional divisão em
períodos da história da filosofia moderna, entendida como vitória do subjetivismo
sobre a transcendência, ou como redescoberta do absoluto no próprio homem, de tal
forma que o mesmo é universalizado. Nessa reconstrução, é limitado o valor
atribuído aos clássicos do Liberalismo, todos ligados à política, enquanto um valor
excessivo é atribuído aos clássicos da filosofia, de tal forma que se corre o risco de
transformar o Liberalismo na expressão política da filosofia "moderna". Em outras
palavras, corre-se o risco de transformar o Liberalismo numa concepção do mundo,
numa ideologia sincretista, reelaborada a posteriori, com base nos mais diversos
materiais filosóficos. Na realidade, revela-se bastante difícil, para não dizer
impossível, inserir os clássicos do pensamento político liberal numa história da
filosofia, focalizada por períodos, tendo por base o critério de "moderno"
(ilumínista e romântico).
Essa reconstrução temporal precisa ser revista numa dimensão política e nãofilosófica,
que considere os processos sociais bem mais amplos e complexos. Não
há dúvidas quanto à estrita ligação existente entre o Liberalismo e a teoria do
individualismo, própria da cultura da Europa moderna; embora as motivações
culturais, da Renascença ao romantismo, tenham mudado consideravelmente. De
qualquer forma, o Liberalismo é apenas uma das soluções políticas dessa teoria, a
que se revelou historicamente vitoriosa mediante as várias Declarações dos direitos
do homem e do cidadão, que consagram a liberdade – no plural – de cada cidadão.
O enfoque filosófico, ao contrário, leva a ressaltar, numa visão progressista
(iluminista) ou providencial (romântica), as etapas necessárias e inevitáveis
mediante as quais o homem se emancipa até alcançar a "universal" razão abstrata do
iluminismo ou a "universal" razão histórica da filosofia romântica. Nestes
momentos, conforme os diferentes autores, teríamos a plena consciência da idéia
liberal. Este Liberalismo filosófico, de origem francesa (Rousseau, Condorcet) ou
alemã (Hegel), visa unicamente a liberdade individual – e por isso mesmo absoluta
– que o indivíduo alcança na medida em que consegue atingir o universal, a vontade
geral ou a vontade do Estado, as únicas que são expressão de autêntica liberdade.
Em síntese: o enfoque filosófico reduz a liberdade individual à vontade geral ou ao
Estado, enquanto o enfoque político pretende garantir as liberdades empíricas do
indivíduo.
Uma segunda diferença entre o Liberalismo na sua interpretação filosófica e o
Liberalismo na sua interpretação política consiste no seguinte: o primeiro exalta a
unidade da vontade política soberana, o segundo defende as diferenças entre os
diversos grupos sociais. Encontramos na história da Europa moderna uma série de
fenômenos culturais e sociais, que quebram a ordem que sustentava o mundo
medieval e desarticulam a sociedade. Temos a Reforma Protestante e o surgimento
de uma pluralidade de Igrejas e temos, também, a afirmação de um mercado aberto,
onde novos grupos sociais começam a emergir, a tomar consciência de si e a entrar
em confrontos. O nascimento do Liberalismo se dá, justamente, no momento em
que se percebe que essa diversidade não é um mal, e sim um bem. Percebe-se,
ainda, a necessidade de encontrar soluções institucionais, que possibilitem a essa
sociedade "diferente" sua expressão. As duas grandes etapas que caracterizaram a
maturação do Liberalismo são: o debate acerca da liberdade religiosa, com a
necessária separação entre o político e o religioso (Milton, Locke), e a defesa dos
partidos políticos como canais para a expressão dos diferentes grupos sociais
(Hume, Burke).
Enfim, a própria concepção imanentista precisa ser invertida e percebida, não como
uma evolução ideal (ou filosófica) que possibilita ao pensamento alcançar a
plenitude da autoconsciência, e sim como um simples fato ou como um processo
histórico-social, característico da moderna história da Europa, chamado hoje de
secularização ou de morte de Deus: é neste contexto que precisamos focalizar a
história do Liberalismo. É necessário não esquecer o processo de laicização da
cultura política, cada vez mais forte após o século XVI; processo tornado inevitável
pela crescente complexidade da gestão do Estado moderno, que exige cada vez mais
técnicas racionais, baseadas na quantificação, bem como atitudes de racionalidade
para uniformizar os dados fornecidos pela tradição. É também necessário não
esquecer o crescente processo de difusão da cultura, a partir da invenção da
imprensa, que multiplicou a força e a difusão das idéias, até a revolução dos mass
media, que colocou os indivíduos na condição de se sentirem sujeitos livres e
autônomos para emitir seus próprios julgamentos.
O subjetivismo moderno, fazendo com que o indivíduo submeta progressivamente
ao controle da razão todas as formas condicionantes de seu viver (religião, ciência,
política, economia, ética, estética) e chegue a se expressar nas maneiras mais
diversas, não representa apenas um fenômeno de evolução filosófica, e sim, de
maneira mais acentuada, um verdadeiro processo social na direção de uma crescente
igualdade de condições e de pensamentos, de maneira que a frágil subjetividade
empírica se sobreponha à idéia do sujeito transcendental. Nesse novo contexto
social, aquele absoluto, que a filosofia identificou como imanente ao indivíduo,
revelou-se – totalmente ao contrário – como sendo apenas uma atitude de
conformismo própria da sociedade de massa, onde todos se consideram livres e
autônomos em seus pensamentos, após a eliminação de toda autoridade
institucionalizada e de todo valor transcendental. Na realidade, neste tipo de
sociedade, aumenta a pressão da opinião comum que, com a mudança dos costumes,
possibilita grande espaço para a livre manifestação de uma subjetividade totalmente
isenta de qualquer direcionamento.
Este preconceito "filosófico", que vê na Renascença, na Reforma e no racionalismo
o prólogo do Liberalismo, leva a três equívocos bastante graves do ponto de vista
histórico e que não podem, neste momento, ser ignorados. Está totalmente ausente
do pensamento liberal, sempre atento à realidade, o ideal renascentista de Prometeu,
a orgulhosa certeza de que o homem, quebradas as correntes, teria realizado na terra
sua emancipação total, juntamente com a da humanidade. O radical pessimismo
antropológico, pelo qual compete ao liberal apenas um trabalho paciente de
reconstrução contra as ameaças, sempre novas e diferentes, à liberdade, não lhe
permite chegar a esta visão perfeccionista. Sua confiança no indivíduo não é
ilimitada; ela assume tonalidades otimistas unicamente na polêmica contra o
paternalismo de tipo absolutista, que tinha seu ponto de partida na mesma premissa
antropológica pessimista e chegava a concluir que os homens são incapazes de se
autogovernar e de optar pela própria felicidade (Kant).
O pensamento liberal, porém, não partilha também do racionalismo construtivista
característico de uma parte do iluminismo, ou seja, daquela total confiança na razão,
sustentada pela vontade da maioria, ou na ciência, como tendo condições para
construir a verdadeira ordem política, planejando a vida social. Em outras palavras,
o Liberalismo não acredita na sociedade como uma máquina que possa ser
artificialmente construída de acordo com um modelo doutrinário; ao contrário, vê a
sociedade como um organismo que precisa crescer de acordo com as tensões
provocadas pelas forças que nele se encontram, na liberdade dialética dos valores
por ele manifestados (J. S. Mill). O marxismo parece ser o herdeiro mais lógico do
racionalismo construtivista do iluminismo. Justamente por este seu posicionamento,
o Liberalismo é levado a exigir limitações ao poder governamental, desconfia de
uma verdade objetiva e absoluta, estimula uma mentalidade experimental e
pragmática, que submete constantemente os próprios enunciados a verificações
empíricas, porque somente assim é possível um confronto ou um diálogo positivo
entre posições políticas diferentes. Em suma, os liberais se identificam mais com
um método do que com uma doutrina.
Porém, o pior engano consiste em ver no Liberalismo uma conseqüência da
Reforma (ou do puritanismo): trata-se de uma tese bastante difundida, quer entre os
católicos integralistas, quer entre os liberais leigos, que ignora as motivações
radicalmente religiosas e não-liberais que animaram luteranos, calvinistas e
puritanos, e esquece que a Reforma se constitui na antítese e não na continuação da
Renascença. Se alguns referenciais de procedência cristã foram assumidos pelo
pensamento liberal, eles têm origem, tanto na tradição da Reforma católica (o livrearbítrio
de Erasmo) quanto na tradição da Reforma Protestante (o pessimismo
antropológico). Todavia, esses referenciais são assumidos num contexto de síntese,
que é político, secular e não-religioso, visto buscar, não a salvação ultraterrena, e
sim uma ordem política terrena, fundamentada nas liberdades civis e no controle do
poder político, que desta forma perde toda fundamentação sagrada. É inegável que
na França, durante as guerras de religião, e na Inglaterra, antes e durante as guerras
civis, encontramos no debate político um emaranhado de relações entre
argumentações constitucionais, teorias políticas democráticas e motivações
religiosas; tudo isto, porém, é fruto unicamente de circunstâncias históricas
específicas. A secularização da cultura política superará com facilidade este
emaranhado de relações.
É nesses debates políticos que começam a se definir, nuclearmente, os princípios do
Liberalismo. Porém, a verdadeira e autônoma face do Liberalismo se manifesta
somente na resposta, por ele dada, ao problema da ruptura da unidade religiosa,
resposta que, num primeiro momento, se chama tolerância e, num segundo
momento, liberdade religiosa: a liberdade religiosa é o berço da liberdade moderna.
A conclusão dessa longa e complexa história, que conheceu as contribuições dos
políticos defensores da tolerância em nome da razão de Estado, dos católicos
formados na tradição erasmiana, que preferiam a persuasão à perseguição, dos
setores mais radicais da Reforma perseguida em toda parte, dos deístas e dos ateus
mais tarde, não foi evidentemente o Estado democrático leigo com sua religião
civil, nem o Estado ético, figuras de Estado que chegaram até nós mediante a
tradição do jacobinismo francês, a primeira, e do idealismo alemão, a segunda,
justamente porque os adjetivos "leigo" e "ético" exprimem a religião do "moderno".
Temos a verdadeira conclusão no princípio, claramente enunciado por Tocqueville,
de livres Igrejas em livre Estado, onde as Igrejas não representam um refúgio para o
indivíduo na sua particular individualidade, e sim uma verdadeira e autêntica
instituição política, garante, para toda a comunidade, da riqueza da vida ética e
religiosa, capaz de se contrapor aos impulsos hedonistas da sociedade do bem-estar,
que representam o perigo mais sutil para a liberdade numa sociedade democrática
de massa.
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10/06 - Socialismo

DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Socialismo
I. SIGNIFICADO DO TERMO; SOCIALISMO E COMUNISMO. Em geral, o
Socialismo tem sido historicamente definido como programa político das classes
trabalhadoras que se foram formando durante a Revolução Industrial. A base
comum das múltiplas variantes do Socialismo pode ser identificada na
transformação substancial do ordenamento jurídico e econômico fundado na
propriedade privada dos meios de produção e troca, numa organização social na
qual: a) o direito de propriedade seja fortemente limitado; b) os principais recursos
econômicos estejam sob o controle das classes trabalhadoras; c) a sua gestão tenha
por objetivo promover a igualdade social (e não somente jurídica ou política), por
meio da intervenção dos poderes públicos. O termo e o conceito de Socialismo
andam unidos, desde a origem, com os de Comunismo (v.), numa relação mutável
que ilustraremos sinteticamente.
Embora tenham sido usadas às vezes para designar, por exemplo, o contratualismo
por escritores italianos do século XVIII e do início do XIX (F. Facchinei, A.
Buonafede, G. Giuliani), as palavras "socialismo" e "socialista" adquiriram seu
sentido moderno nos programas de cooperação entre os operários e nos de gestão
comum dos meios de produção propugnados pelos owenianos na segunda metade da
década de 1820-1830, sendo, em seguida, largamente empregados nesse sentido na
década seguinte, na Inglaterra e na França: o órgão oweniano "The New Moral
World" admitia a expressão organ of socialism em fim de 1836; em 1841, R. Owen
escrevia o opúsculo O que é o Socialismo?, e o sansimoniano P. Leroux
contrapunha o Socialismo ao individualismo no artigo sobre o individualismo e o
Socialismo, publicado em 1833, na Revue Enciclopédique; nos mesmos anos,
"Socialismo" era usada pelos fourieristas como sinônimo de "escola societária". Em
1835, o estudioso francês L. Reybaud publicava na Revue des Deux Mondes uma
série de artigos, reunidos depois sob o título Estudos sobre rei armadores ou
socialistas modernos (Paris, 1842-1843), e o alemão L. von Stein publicava em
1842, em Leipzig, Socialismo e comunismo na França de hoje, uma obra que,
embora crítica em relação às doutrinas socialistas, contribuía notavelmente para a
sua difusão na Alemanha. No fim da década de 1830 começava a ser usado na
França, por E. Cabet e outros, o termo "comunismo" como equivalente a
"Socialismo" ou a "comunitarismo". Mas, na década de 1840, as palavras
"comunismo" e "Socialismo" acabaram, pelo menos em parte, por indicar variações
diversas do movimento que denunciava as condições dos operários no
desenvolvimento da sociedade industrial, se opunha ao liberalismo político e
econômico e ao individualismo, apresentava um projeto de uma reconstrução da
sociedade em bases comunitárias e promovia formas associativas de vários gêneros
(sindicais, políticas, experiências cooperativistas e comunitárias) para realizar as
novas idéias. Prova dessa divergência de significados é a declaração de F. Engels no
prefácio ao Manifesto do partido comunista, escrita para a edição inglesa de 1888 (e
repetida com palavras quase idênticas na edição alemã de 1890): "Em 1847,
apontavam-se como socialistas, de um lado, os seguidores de diversos sistemas
utópicos: discípulos de Owen na Inglaterra, de Fourier na França, uns e outros já
reduzidos ao estado de simples seitas em via de gradual extinção; de outro lado, os
charlatanismos sociais mais diversos... em ambos os casos, tratava-se de homens
alheios ao movimento operário que procuravam mais que tudo o apoio das classes
'instruídas'. Toda a fração da classe operária que se tinha convencido da
insuficiência das revoluções unicamente políticas e proclamara a necessidade de
uma transformação geral da sociedade se dizia comunista. Era um tipo de
comunismo grosseiro, apenas esboçado, puramente instintivo; visava, todavia, ao
essencial e teve força suficiente entre a classe operária para dar origem ao
comunismo utópico, ao de Cabet na França e ao de Weitling na Alemanha.
Portanto, em 1847, o Socialismo era um movimento burguês, o comunismo um
movimento da classe operária".
Afastada, com o fracasso da revolução de 1848, a possibilidade de pôr em prática os
programas socialistas, na segunda metade do século XIX, a contraposição de
significados entre "Socialismo" e "comunismo" perdeu importância: o problema
principal era o de constituir organizações operárias autônomas e de obter para elas o
reconhecimento dos direitos elementares de associação e de imprensa, a ampliação
do direito de voto para além dos limites consistórios dos ordenamentos liberais, o
direito à greve e à contratação sindical. "Associação Internacional dos
Trabalhadores" chamou-se a Primeira Internacional, fundada em 1864, e partidos
"operários", "socialistas", "social-democráticos", "laboristas", as organizações
políticas dos trabalhadores que surgiram, em bases nacionais, a partir dos anos de
1870 e se coligaram por meio da Segunda Internacional, nascida em 1889.
Com a desintegração da frente socialista na Primeira Guerra Mundial e a revolução
de 1917 na Rússia, o contraste entre "Socialismo" e "comunismo" foi reatualizado
pelo leninismo: o partido bolchevique assumiu a denominação de Partido
Comunista (bolchevique) em 1918, invocando polemicamente o conteúdo
revolucionário original do Manifesto e o rompimento com as posições reformistas
majoritárias nos partidos socialistas europeus.
II. O SOCIALISMO "DA UTOPIA À CIÊNCIA". Lá pelo fim da década de 1830,
começou a ser usada pelos críticos do Socialismo a qualificação de "utopistas" para
designar os socialistas (a aproximação entre "Socialismo" e "utopismo" foi feita
provavelmente pela primeira vez em 1839, na História da economia política, do
economista liberal francês J. A. Blanqui). Mas foram Marx e Engels que
estabeleceram no Manifesto (e depois em vários outros lugares, dentre os quais
destacamos especialmente os capítulos do Antidühring de Engels refundidos no
pequeno volume A evolução do socialismo da utopia à ciência, 1888) a distinção
entre socialismo "utópico" e socialismo "científico", a que se refere depois
continuamente a tradição marxista. Enquanto a crítica do Manifesto é muito severa
em relação ao Socialismo "reacionário" dos críticos do industrialismo que
idealizavam a situação histórica anterior, do "verdadeiro" Socialismo filosófico
alemão e do Socialismo "burguês" de Proudhon por causa do seu reformismo, Marx
e Engels reconheceram a função positiva desempenhada pelo "Socialismo e
comunismo crítico-utópico", especialmente pelo de Saint-Simon, Fourier e Owen,
na identificação das contradições fundamentais da sociedade industrial e na
delineação do futuro ordenamento social (eliminação do contraste entre cidade e
campo, abolição da família junto com a propriedade privada, transformação do
Estado em simples órgão de administração da produção, unificação da instrução e
do trabalho produtivo, etc.). Consideraram, porém, suas tentativas parciais e
imaturas em relação ao fraco desenvolvimento do proletariado industrial e às lutas
de classe, motivo pelo qual esse tipo de Socialismo acabou por construir "sistemas"
e "seitas" que "não descobrem no proletariado nenhuma função histórica autônoma,
nenhum movimento político que lhe seja próprio". O caráter científico da nova
teoria socialista de Marx e Engels consiste, segundo os seus autores: a) no fato de
que o Socialismo, de programa racionalístico de reconstrução da sociedade que se
dirige indistintamente à sua parte intelectualmente esclarecida, se transforma em
programa de auto-emancipação do proletariado, como sujeito histórico da tendência
objetiva para a solução comunista das contradições econômico-sociais do
capitalismo (em particular da contradição entre propriedade privada e crescente
socialização dos meios e dos processos produtivos); nesse sentido o Socialismo
pretende ser "ciência" da revolução proletária; b) no fato de que o Socialismo não
se apresenta mais como um "ideal", mas como uma necessidade histórica derivante
do inevitável declínio do modo capitalista de produção, que se anuncia
objetivamente nas crises cada vez mais agudas que ele enfrenta; c) no fato de que o
Socialismo usa agora um "método científico" de análise da sociedade e da história,
que tem seus pontos fortes no "materialismo histórico", com a teoria da sucessão
histórica dos modos de produção, e na "crítica da economia política", com a teoria
da mais-valia como forma específica da exploração na situação do capitalismo
industrial. São aspectos conexos, mas parcialmente diferentes. Enquanto até a
metade do século XIX, nas obras de Marx e Engels, se dá maior ênfase à história
como tecido de lutas de classe e à identificação do proletariado como classe
autonomamente revolucionária, os aspectos referentes à necessidade objetiva do
desenvolvimento econômico só foram ressaltados de modo particular após o
fracasso da revolução de 1848, quando, contra as impaciências revolucionárias
ainda sobreviventes, Marx insistiu no axioma de que "uma formação social não
perece enquanto não se tenham desenvolvido todas as forças produtivas a que pode
dar origem" (prefácio de 1859 à obra Para a crítica da economia política). A
imagem do Marx cientista e antiutopista, investigador das contradições e da ruína
inevitável do sistema capitalista, tornou-se corrente no Socialismo da Segunda
Internacional, especialmente na obra de elaboração e de construção sistemática do
marxismo realizada por K. Kautsky e pelo centro "ortodoxo" do partido socialdemocrático
alemão; mas já no esforço de Marx e Engels por transformá-lo em
ciência e em suprimir-lhe o conteúdo utópico e ético, o Socialismo, ao mesmo
tempo que se substanciava de concreção histórica e econômica, perdia parcialmente
a dimensão de "projetualidade", não garantida pelo curso das coisas, acerca do
ordenamento futuro da sociedade. Marx entendeu fundamentalmente a sua análise
como "crítica científica" do modo de produção burguês-capitalista, recusando-se a
formular "receitas para a cozinha do futuro" (pós-escrito de 1873 ao primeiro livro
de O capital). Deu indicações precisas apenas sobre um ponto: a passagem do
ordenamento baseado na propriedade privada à sociedade comunista se
configuraria, após a tomada do poder por parte do proletariado, como um período
de transição caracterizado, no plano político, pela "ditadura do proletariado" e, no
plano econômico, pela sobrevivência parcial da forma mercatória dos produtos e do
trabalho, com a relativa repartição da renda segundo as quantidades desiguais de
trabalho; numa segunda fase, com a completa extinção da divisão das classes e da
forma mercatória, todo o domínio político desapareceria na sansimoniana
"administração das coisas" e a repartição do produto social se realizaria segundo as
"necessidades" (Escritos sobre a Comuna, 1871, e Crítica do Programa de Gotha,
1875). O ponto teórico que mantém unidas a crítica do Estado e a do modo
capitalista de produção é, em Marx, o fato de que a abolição do trabalho assalariado
exige a apropriação e o controle direto", por parte dos produtores, das condições de
trabalho e de todo o aparelho que regula a reprodução social.
Aquilo a que Marx chamou "fases" da sociedade comunista, a tradição marxista
denominou-o depois "Socialismo" e "comunismo", dando ao Socialismo o
significado de sociedade transitória a caminho de um modo de produção
integralmente comunista.
A formação de um movimento político da classe operária que se organiza visando à
gestão do Estado e à direção central da economia (deixando a questão de como
chegar a esse resultado, por via pacífica ou revolucionária, às circunstâncias
históricas concretas) foi o motivo principal da divergência e da luta furiosa
suscitadas no seio da Primeira Internacional entre o Socialismo de Marx e Engels e
o anarquismo em suas várias formas. No período da formação dos partidos
socialistas nos últimos decênios do século XIX, o ponto de vista do Socialismo
marxista pareceu já majoritário e consolidado, tanto que o "Socialismo libertário"
de matriz anárquica foi explicitamente excluído da Segunda Internacional, em 1896.
III. TENDÊNCIAS DO SOCIALISMO. Dentro do Socialismo da Segunda
Internacional delinearam-se as principais tendências políticas que deviam coexistir
na social-democracia clássica até a Primeira Guerra Mundial e caracterizar ao
mesmo tempo, pelo menos em parte, as orientações divergentes do Socialismo
posterior. As diferenças de posição que se foram definindo a partir da disputa sobre
o "revisionismo", entre o fim do século XIX e o início do século XX, mergulham
em parte suas raízes na história anterior do Socialismo (por exemplo, o contraste
entre reformistas e revolucionários já se havia dado na França em 1848), e, em
parte, são provocadas pela inserção cada vez mais ampla do movimento socialista
na luta política e sindical diária, dentro do quadro das estruturas políticas liberaldemocráticas
dos maiores Estados industriais, e pela delonga da crise final de um
capitalismo que, saído da grande depressão, iniciava uma nova fase expansiva. A
dificuldade real era captada por Rosa Luxemburg, ao escrever que a vontade
revolucionária, "as massas não a podem formar senão na luta contínua contra a
estrutura existente e somente no seu contexto. A união da grande massa popular
com um objetivo que vai além de todo o ordenamento atual, o da luta diária para a
grande reforma do mundo, eis o grande problema do movimento socialdemocrático,
que, portanto, deve atuar avançando durante o curso da sua evolução
entre dois escolhos: entre o abandono do caráter de massa e o abandono do objetivo
final, entre o recair na seita e o precipitar-se no movimento reformista burguês"
(Reforma social ou revolução?, 1899).
A grande divisão foi, antes de tudo, entre o Socialismo declaradamente reformista
que, considerando o sistema capitalista profundamente mudado, pugnava pela
integração do movimento operário nas estruturas políticas e econômicas capitalistas
com o propósito da sua gradual transformação em sentido socialista, pela via
democrático-parlamentar, e, do outro lado, o Socialismo que considerava atual o
modelo analítico do capitalismo elaborado por Marx e a perspectiva da crise geral
do sistema e da revolução. A primeira posição teve sua elaboração teórica mais
autorizada no "revisionismo" de E. Bernstein (Os pressupostos do socialismo e as
junções da social-democracia, 1899). Derrotado formalmente no plano das decisões
congressuais do partido social-democrático alemão e das resoluções da
Internacional, o reformismo "revisionista" ia adquirindo, todavia, consistência
orgânica e espaço na práxis real do movimento operário de todos os países
industrialmente avançados e se tornou na Inglaterra, onde o marxismo nunca teve
uma difusão de alta relevância, a teoria oficial da Fabian Society (G. B. Shaw e S.
Webb, Ensaios fabianos sobre o Socialismo, 1899) e da maioria do partido laborista
e do movimento sindical. É de lembrar que os primeiros ensaios "revisionistas" de
Bernstein foram elaborados na Inglaterra e em estreita referência à situação inglesa.
Analisadas as coisas num quadro temporário bastante longo, o Socialismo
reformista, que avalia o contexto institucional do Estado liberal-democrático como
o melhor terreno para a afirmação dos objetivos das classes trabalhadoras e que
considera, implícita ou explicitamente, o "fim último" da abolição da forma
mercatória dos produtos do trabalho e do trabalhador (o princípio mais fundamental
do Socialismo marxista) como uma utopia a ser abandonada, tornou-se a alternativa
histórica e amplamente preponderante no Socialismo ocidental.
A alternativa marxista "ortodoxa", que predominou na social-democracia "clássica"
do partido alemão e da Segunda Internacional, e que teve em K. Kautsky, até a
Primeira Guerra Mundial, o teórico mais orgânico, procurou harmonizar a letra do
Socialismo marxista, aceito formalmente em sua globalidade, com uma concepção
diferente e uma avaliação positiva "do Estado moderno, do papel do Parlamento, da
função das liberdades políticas e civis herdadas do liberalismo burguês, da
insubstituibilidade de um aparelho administrativo-burocrático centralizado (em
aberta polêmica com a 'legislação direta') e do significado da democracia política
como método para o conhecimento da realidade e verificação da vontade do corpo
social" (M. C. Salvadori). O objetivo final do Socialismo era continuamente
reafirmado, mas adiado para uma situação histórica nunca atual, de maturação
decisiva das suas condições objetivas e subjetivas; o núcleo teórico radical era
salvaguardado à custa do contínuo adiamento da práxis correspondente, até o
momento em que as opções fundamentais se tornaram iniludíveis no período da
guerra e da aguda crise social do pós-guerra, e a síntese efetuada pela maioria da
social-democracia clássica, entre "ortodoxia" formal e "revisão" substancial, tornouse
insustentável, abrindo um período atormentado de lacerações não só entre os
continuadores da Segunda Internacional e os adeptos da nova Internacional
leninista, mas também no campo do Socialismo de matriz não-leninista
(Revisionismo (v.) e Social-democracia (v.)).
As outras duas alternativas, que se constituíram, com uma fisionomia autônoma, no
pensamento socialista, foram as posições revolucionárias de esquerda que tiveram
como maiores teóricos R. Luxemburg e V. I. Lenin. Em ambas as tendências, o
nexo entre funções imediatas do movimento operário e revolução social se resolve,
em princípio, na subordinação de toda a experiência do movimento operário ao
objetivo final da conquista e do exercício direto do poder político; em ambas o
Estado liberal-democrático é entendido no sentido originário de Marx e Engels, isto
é, de Estado de Classe ("o Estado, ou seja, a organização política, e as relações de
propriedade, ou seja, a organização jurídica do capitalismo, enquanto se tornam,
com o sucessivo desenvolvimento, cada vez mais capitalistas e não cada vez mais
socialistas, opõem à teoria da instauração gradual do Socialismo duas dificuldades
insuperáveis", afirma R. Luxemburg em Reforma social ou revolução?; e é
conhecida a elaboração de Lenin sobre a destruição revolucionária do Estado
burguês e sobre a sua substituição pelo "Estado-comuna", à margem dos textos
marxianos sobre a Comuna de 1871, contida em Estado e revolução, 1917). Mas em
R. Luxemburg subsiste, transcrita em termos marxistas, a tendência "economicistarevolucionária"
do sindicalismo revolucionário e do sindicalismo anárquico, sendo
postuladas a continuidade entre a luta econômica imediata e a luta política
revolucionária e privilegiada a ação direta dos organismos de base que surgem
espontaneamente nos períodos mais agudos da luta de classe como alavanca
insubstituível da transformação social. Lenin, pelo contrário, não obstante todo o
valor dado aos sovietes durante a revolução de 1905 e 1917, defende "a
subordinação incondicional de todos os movimentos econômicos, culturais e
ideológicos do proletariado, ao movimento político dirigido pelo partido
revolucionário. Seria essa orientação do marxismo, que considerava como primária
a 'política', que havia de experimentar o triunfo do seu princípio em escala mundial
na revolução bolchevique de 1917, e que determinou até hoje toda a estrutura e
desenvolvimento do Estado soviético, com o totalitarismo decorrente do seu
princípio político" (K. Korsch, Karl Marx, 1938). A oscilação entre a supremacia
do partido e a primazia dos organismos básicos de conselho foi, de qualquer modo,
uma característica do Socialismo revolucionário, várias vezes repetida em sua
história (Leninismo (v.)).
IV. PROBLEMAS ATUAIS DO SOCIALISMO. A cisão do movimento socialista
internacional que se seguiu à revolução soviética, à medida que o novo Estado ia
adquirindo, nas décadas de 1920 e 1930, a sua configuração jurídica, política e
econômica definitivas, foi cristalizando o Socialismo e o comunismo em duas
culturas políticas profundamente diferentes e muitas vezes hostis, mesmo que ao
período de choque frontal, em que os socialistas foram tratados pelas lideranças
leninistas como "social-traidores" e "social-fascistas", se tenha seguido uma fase de
aliança e de colaboração durante a luta antifascista e a resistência. Não faltaram as
formas intermediárias e as tentativas de superar o cisma que se verificou no
movimento operário, mas, na realidade, foram elaboradas, a partir da década de
1930 e especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, dois modelos
completamente diferentes de Socialismo, ambos muito distantes das formas
previstas pelo Socialismo do século passado e da formulação utópica do Manifesto
de Marx e Engels ("No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e seus
antagonismos de classe, entra uma associação na qual o livre desenvolvimento de
cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos"). No Ocidente, os
governos regidos pelas social-democracias, na Alemanha, na Inglaterra, na Bélgica
e nos países escandinavos, promoveram algumas nacionalizações e a instauração de
uma economia mista no quadro de um "capitalismo organizado", com redistribuicão
de renda e formas de segurança social para as classes trabalhadoras que o "Estado
assistencial" (Welfare State) tornou possíveis. Ao contrário da social-democracia
clássica, as social-democracias contemporâneas são partidos populares que
abandonaram a idéia da divisão da sociedade em classes contrapostas e o
Socialismo como abolição da propriedade privada (as declarações mais explícitas
foram as da social-democracia alemã no programa de Bad Godesberg, 1959)
(Reformismo (v.) e v. Social-democráticos). Na União Soviética e nos países em
que se instaurou a ditadura do partido "marxista-leninista" (identificada
ideologicamente com a "ditadura do proletariado"), o Socialismo, de fase de
transição, transformou-se em formação social autônoma, caracterizada pelo
esvaziamento das formas originárias da democracia de base pela concentração
autoritária dos poderes por parte do aparelho burocrático do Estado e do partido, e
pelo reproduzir-se de profundas desigualdades e agudos conflitos sociais, não
obstante a "desestalinização" e as tentativas de liberalização, substancialmente
fracassadas, de sistemas político-econômicos, aos quais hoje é freqüentemente
aplicada a fórmula de "Socialismo real", para sublinhar a sua discordância com as
expectativas do Socialismo teórico.
Surge, portanto, um dilema que N. Bobbio ilustrou nos seguintes termos:
"chocamo-nos com essa contradição, que é a verdadeira pedra de tropeço da
democracia socialista (não se confunda com a social-democracia): pelo método
democrático o Socialismo é inatingível; mas o Socialismo não alcançado por via
democrática não consegue encontrar o caminho para a transição de um regime de
ditadura ao regime de democracia. Nos Estados capitalistas, o método democrático,
mesmo em suas melhores explicações, bloqueia o caminho para o Socialismo; nos
Estados socialistas, a concentração do poder tornada necessária para uma direção
unificada da economia torna extremamente difícil a introdução do método
democrático". O problema seria o de conjugar os conteúdos socialistas com as
técnicas jurídico-políticas que derivam da tradição liberal-democrática.
Confirmando também aqui a consolidada diferença entre culturas socialistas e
comunistas anteriormente mencionada, é completamente diferente a forma como é
proposto o problema na literatura marxista que rejeita o "Socialismo real". Citamos,
por exemplo, a introdução de R. Rossanda num congresso de 1977 sobre as
"sociedades pós-revolucionárias": "Se se trata de formações sociais, então a luta é
entre 'poderes' e seus sistemas de compensação... Se se trata de formações
capitalistas de tipo novo, então a questão não está numa exortação à democracia e
aos direitos civis. Está na retomada da luta de classes nesses países".
Os problemas mencionados tornam-se ainda mais urgentes desde que, na década de
1970, ambos os modelos de Socialismo entram em crise: o Welfare State,
promovido pelas social-democracias, não consegue manter suas promessas diante
da crise econômica; o "Socialismo real", por sua vez, é obrigado a contar cada vez
mais com seus aparelhos militares para manter o status quo. Nem é possível afirmar
que o propósito de alguns partidos comunistas ocidentais de elaborar uma "terceira
via" eurocomunista tenha até agora esboçado um modelo alternativo
suficientemente definido de Socialismo (v. Eurocomunismo).
Outra ordem de problemas concerne ao âmbito da validade possível de qualquer
modelo socialista. O Internacionalismo (v.) substancialmente eurocêntrico do
século passado já foi abandonado na fundamentação da Internacional leninista que
tentou, pelo menos em princípio, unir, sob o signo do antiimperialismo, a luta do
proletariado nos países industriais, a aspiração à independência dos povos
oprimidos dos países coloniais e a defesa da URSS como "pátria do Socialismo". A
recente evolução do Socialismo demonstrou, de forma cada vez mais evidente, o
peso das histórias nacionais, da diversidade das situações econômicas, da
pluralidade das tradições culturais e das ideologias. Após a Segunda Guerra
Mundial, ao lado dos modelos apresentados pelas social-democracias européias e
pelo Socialismo soviético, se delinearam as realidades dos Estados de nova
independência do Terceiro Mundo que, embora adotando o Socialismo, têm
perseguido o objetivo da modernização por meio dos instrumentos do partido único,
do fortalecimento das elites burocráticas e militares, da integração das massas com
base no tradicionalismo cultural e religioso. No mundo comunista, ao Socialismo
soviético se contrapuseram, além disso, o Socialismo da Iugoslávia, fundado na
Autogestão (v.), e o radicalismo comunista da China (Maoísmo (v.)). A teoria das
"vias nacionais para o Socialismo" (aceita como princípio também pela União
Soviética, mas corrigida em 1968 pela tese da "soberania limitada" dos Estados
socialistas do próprio bloco) toma ciência dessa situação, mas deixa em aberto o
problema do internacionalismo e dos modos de uma ação comum entre Socialismos
fortemente divergentes e, às vezes, abertamente contrastantes.
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17/06 - Totalitarismo/Autoritarismo
24/06 - Totalitarismo/Autoritarismo


DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Totalitarismo
I. AS TEORIAS CLÁSSICAS DO TOTALITARISMO. Na Itália, começou-se a
falar de Estado "totalitário" por volta da metade da década de 1920 para significar,
no nível de avaliação, as características do Estado fascista em oposição ao Estado
liberal. A expressão está presente na palavra "Fascismo" da Enciclopedia Italiana
(1932), quer na parte escrita por Gentile, quer na parte redigida por Mussolini, onde
se afirma a novidade histórica de um "partido que governa totalitariamente uma
nação". Na Alemanha nazista, o termo, ao contrário, teve pouca voga, preferindo-se
falar de Estado "autoritário". Entretanto, a expressão começava a ser usada para
designar todas as ditaduras monopartidárias, abrangendo tanto as fascistas quanto as
comunistas. Nesse sentido, empregou-a George H. Sabine no verbete "Estado" da
Encyclopaedia of the Social Sciences (1934). Em 1940, num simpósio sobre o
"Estado totalitário" publicado nos Proceedings of American Philosophical Society,
Carlton H. Hayes descreveu algumas características originais do governo totalitário
e especialmente a monopolização de todos os poderes no seio da sociedade, a
necessidade de gerar uma sustentação de massa, o recurso às modernas técnicas de
propaganda. Em 1942, em The permanent revolution, Sigmund Neumann colocou
em destaque o movimento permanente que se desprendeu dos regimes totalitários e
que atinge, numa mutação incessante, os próprios procedimentos e instituições
políticos. Todavia, não obstante tais antecedentes, o uso da palavra Totalitarismo
para designar, com uma conotação fortemente derrogatória, todas ou algumas
ditaduras monopartidárias fascistas ou comunistas generalizou-se somente após a
Segunda Guerra Mundial. Durante o mesmo período foram formuladas as teorias
mais completas do Totalitarismo, a de Hannah Arendt (The origins of
totalitarianism, 1951) e a de Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski
(Totalitarian dictatorship and autocracy, 1956).
Segundo H. Arendt, o Totalitarismo é uma forma de domínio radicalmente nova,
porque não se limita a destruir as capacidades políticas do homem, isolando-o em
relação à vida pública, como faziam as velhas tiranias e os velhos despotismos, mas
tende a destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações
privadas do homem, tornando-o estranho assim ao mundo e privando-o até de seu
próprio eu. Nesse sentido, o fim do Totalitarismo é a transformação da natureza
humana, a conversão dos homens em "feixes de recíproca reação", e tal fim é
perseguido mediante uma combinação, especificamente totalitária, de ideologia e de
terror. A ideologia totalitária pretende explicar com certeza absoluta e de maneira
total o curso da história. Torna-se, por isso, independente de toda experiência ou
verificação fatual e constrói um mundo fictício e logicamente coerente do qual
derivam diretrizes de ação, cuja legitimidade é garantida pela conformidade com a
lei da evolução histórica. Essa lógica coativa da ideologia, perdido todo contato
com o mundo real, tende a colocar na penumbra o próprio conteúdo ideológico e a
gerar um movimento arbitrário e permanente. O terror totalitário, por sua vez, serve
para traduzir, na realidade, o mundo fictício da ideologia e confirmá-la, tanto em
seu conteúdo, quanto, e sobretudo, em sua lógica deformada. Isso atinge, na
verdade, não apenas os inimigos reais (o que acontece na fase da instauração do
regime), mas também e especialmente os inimigos "objetivos", cuja identidade é
definida pela orientação político-ideológica do governo, mais do que pelo desejo
desses inimigos em derrubá-lo. E na fase mais extrema atinge também vítimas
escolhidas inteiramente ao acaso. O terror total que arregimenta as massas de
indivíduos isolados e as sustenta num mundo que, segundo elas, se tornou deserto
torna-se por isso um instrumento permanente de governo e constitui a própria
essência do Totalitarismo, enquanto a lógica dedutiva e coercitiva da ideologia é
seu princípio de ação, ou seja, o princípio que o faz mover.
No plano organizativo, a ação da ideologia e do terror manifesta-se por meio do
partido único, cuja formação elitista cultiva uma crença fanática na ideologia,
propagando-a sem cessar, e cujas organizações funcionais realizam a sincronização
ideológica de todos os tipos de grupos e de instituições sociais e a politização das
áreas mais remotas da política (esporte e atividades livres, por exemplo), e da
polícia secreta, cuja técnica operacional transforma toda a sociedade num sistema
de espionagem onipresente e onde cada pessoa pode ser um agente da polícia e onde
todos se sentem sob constante vigilância. O regime totalitário não tem entretanto
uma estrutura monolítica. Há, bem pelo contrário, uma multiplicação e uma
sobreposição de funções e de competências da administração estatal, do partido e da
polícia secreta, que dão lugar a um emaranhado organizativo confuso, bem distinto
de uma típica "ausência de estrutura". Essa ausência de estrutura está de acordo com
o movimento e a imprevisibilidade próprios do regime totalitário e que têm origem
na vontade absoluta do ditador, o qual sempre está em grau de fazer flutuar o centro
do poder totalitário de uma para outra hierarquia. A vontade do chefe é a lei do
partido e toda organização partidária não tem outro escopo senão o de realizá-la. O
chefe é o depositário da ideologia: apenas ele pode interpretá-la ou corrigi-la. Até a
polícia secreta, cujo prestígio cresceu extraordinariamente em relação ao que
gozava nos velhos regimes autoritários, tem um poder real menor, pelo fato de estar
inteiramente sujeita à vontade do chefe, o único a quem compete decidir quem será
o próximo inimigo potencial ou "objetivo". Segundo essa interpretação, a
personalização do poder é portanto um aspecto crucial dos regimes totalitários.
Entretanto, Arendt não faz dela explicitamente um terceiro pilar da noção de
Totalitarismo (ao lado do terror e da ideologia), provavelmente para não perturbar a
solidez da concepção essencialista e teleológica do fenômeno que se manifesta por
conseqüência algo densa.
A segunda teoria clássica, a de Carl J. Friedrich e de Zbigniew K. Brzezinski,
define o Totalitarismo com base nos traços característicos que podem ser
encontrados na organização dos regimes totalitários. Segundo essa colocação, o
regime totalitário é resultante da união dos seis pontos seguintes: 1) uma ideologia
oficial, que diz respeito a todos os aspectos da atividade e da existência do homem,
a qual todos os membros da sociedade devem abraçar, e que critica, de modo
radical, o estado atual das coisas e dirige a luta pela sua transformação; 2) um
partido único de massa dirigido tipicamente por um ditador, estruturado de uma
forma hierárquica, com uma posição de superioridade ou de mistura com a
organização burocrática do Estado, composto por pequena percentagem da
população, em que uma parte nutre apaixonada e inabalável fé na ideologia e está
disposta a qualquer atividade para propagá-la e atuá-la; 3) um sistema de terrorismo
policial, que apóia e ao mesmo tempo controla o partido, faz frutificar a ciência
moderna e especialmente a psicologia científica e é dirigido de uma forma própria,
não apenas contra os inimigos plausíveis do regime, mas ainda contra as classes da
população arbitrariamente escolhidas; 4) um monopólio tendencialmente absoluto,
nas mãos do partido e baseado na tecnologia moderna, da direção de todos os meios
de comunicação de massa, como a imprensa, o rádio e o cinema; 5) um monopólio
tendencialmente absoluto, nas mãos do partido e baseado na tecnologia moderna, de
todos os instrumentos da luta armada; 6) um controle e uma direção central de toda
a economia por meio da coordenação burocrática das unidades produtivas antes
independentes. A combinação habilidosa de propaganda e de terror, tornada
possível graças ao uso da tecnologia moderna e da moderna organização de massa,
confere aos regimes totalitários uma força de penetração e de mobilização da
sociedade qualitativamente nova em relação a qualquer regime autoritário ou
despótico do passado e torna-os por isso um fenômeno político historicamente
único.
Entre a interpretação de Arendt e a de Friedrich-Brzezinski há diferenças notáveis.
Mencionarei apenas as principais. Antes de tudo, é diferente o modo de abordar o
tema: Arendt procura determinar o fim essencial do Totalitarismo que identifica na
transformação da natureza humana, reduzindo os homens a autômatos
absolutamente obedientes e em torno desse fim ordena todos os outros aspectos do
fenômeno; Friedrich e Brzezinski, ao contrário, não reconhecem nenhum fim
essencial ou conatural no Totalitarismo e limitam-se a descrever uma "síndrome
totalitária", isto é, um conjunto de traços característicos dos regimes totalitários. Em
segundo lugar, na interpretação de Friedrich-Brzezinski falta, pelo menos
parcialmente, a ênfase posta por Arendt na personalização do poder totalitário e no
papel crucial do chefe, que detém em suas mãos os meandros da ideologia, do terror
e de toda a organização totalitária. Esta segunda diferença está ligada, em grau
considerável, a uma terceira, que diz respeito ao âmbito de aplicação da noção de
Totalitarismo. Para Arendt são totalitárias apenas a Alemanha hitlerista (de 1938
em diante) e a Rússia stalinista (de 1930 em diante); para Friedrich e Brzezinski são
totalitários, além do regime nazista e soviético, o regime fascista italiano, o regime
comunista chinês e os regimes comunistas do Leste europeu.
Mas existem pontos de acordo que também são notáveis. Em primeiro lugar, tanto
Arendt quanto Friedrich e Brzezinski vêem no Totalitarismo uma nova forma de
dominação política, pelo fato de ele ser capaz de conseguir um grau de penetração e
de mobilização da sociedade que não tem precedentes nos regimes conhecidos do
passado, e representa nesse sentido um verdadeiro salto de qualidade. Em segundo
lugar, as duas interpretações concordam ao identificar três aspectos centrais do
regime totalitário numa ideologia oficial, no terror policial e num partido único de
massa. A polícia secreta que Arendt acrescenta a esse elenco no plano institucional
e o controle monopolista dos meios de comunicação e dos instrumentos de
violência, assim como a direção central da economia, acrescentados por Friedrich e
Brzezinski, podem considerar-se, ao menos dentro de certos limites, como
especificações posteriores, que não afetam a centralização da ideologia, do terror e
do partido único. Nesse sentido, poder-se-ia dizer em linhas gerais que o regime
totalitário dá pouca importância à distinção tradicional entre Estado, ou melhor,
aparelho político e sociedade, por meio do instrumento organizacional do partido
único de massa, que é plenamente maleável e pilotável a partir do vértice do regime,
e destrói ou afeta o poder e modifica o comportamento regular e previsível dos
corpos organizados do Estado (burocracia, exército, magistratura), e por meio do
emprego concomitante e combinado da doutrinação ideológica e do terror, dentro
das formas que a tecnologia moderna oferece e que permitem penetrar e politizar
todas as células do tecido social. Desde a época em que foram apresentadas as duas
teorias que acabamos de expor houve a tendência de reproduzir esses três aspectos
do Totalitarismo por parte de muitos autores que se ocuparam do assunto, embora
com formulações e destaques diferentes. Raymond Aron, por exemplo, coloca entre
as características do Totalitarismo um partido que monopoliza a atividade política,
uma ideologia que anima o partido e se torna verdade oficial do Estado, e, por meio
dos controles totalitários sobre a sociedade, uma politização de todos os erros ou os
insucessos dos indivíduos e portanto a instauração de um terror ao mesmo tempo
policiesco e ideológico.
Contudo, a partir do início da década de 1960, e em certos aspectos mesmo antes,
foram-se delineando correntes de revisão das teorias clássicas do Totalitarismo, que
atacaram em três direções: a novidade histórica do Totalitarismo, a similaridade
entre o Totalitarismo fascista e o Totalitarismo comunista e a extensão do conceito
de Totalitarismo a todos os regimes comunistas e à própria Rússia pós-stalinista.
Essas revisões demonstraram uma eficácia crescente nas três direções indicadas.
Menor eficácia se verificou na pesquisa de precedentes históricos. Foram aventadas
diversas analogias, mas não se alterou o caráter de substancial novidade dos
regimes totalitários. Maior eficácia se verificou na análise das relações entre o
Totalitarismo fascista e o Totalitarismo comunista. Não pôde ser contestada a
existência de elementos de semelhança, mas também foram identificadas diferenças
muito relevantes. A eficácia máxima foi encontrada na limitação do campo de
aplicação do conceito de Totalitarismo: uma direção na qual, de resto, a tendência
revisionista teve em vista a teoria de Friedrich e não (ou então apenas de forma
indireta) a de Arendt. Será portanto oportuno examinar em separado essas três
partes da pesquisa.
II. TOTALITARISMO MODERNO E EXPERIÊNCIAS POLÍTICAS
PRECEDENTES. Vários autores identificaram precedentes históricos do
Totalitarismo, tanto na Antigüidade greco-romana como no despotismo oriental,
como ainda em algumas experiências políticas da Europa moderna. Para a
Antigüidade grega e romana olhou, entre outros, Franz Neumann, o qual acha que
tanto o regime espartano quanto o regime do Império Romano dos tempos de
Diocleciano foram "ditaduras totalitárias". No primeiro caso, Neumann sublinha o
domínio absoluto dos espartanos sobre os ilotas, baseado num terror policiesco
permanente, posto em ato por grupos de jovens espartanos que os éforos mandavam
clandestinamente, de tempos a tempos, para aterrorizar e assassinar os ilotas; e a
coesão da classe dominante, conseguida com um controle completo da sociedade e
da vida privada, por meio de técnicas e de instituições especiais, como a
transferência para o internato dos meninos quando atingiam os seis anos de idade e
um rígido esquema de educação estatal. No segundo caso, Neumann concentra sua
atenção sobre a cruel política da arregimentação social por meio da qual
Diocleciano procurou segurar o processo de deterioração da vida econômica,
impondo compulsoriamente um Estado corporativo que garantisse a produção e a
disponibilidade das forças de trabalho. Todos os mestres e as profissões foram
organizados em corporações, tornando-se obrigatório e hereditário pertencer a elas.
Os mineiros e os cavadores eram portadores de um sinal específico; os padeiros só
podiam casar no âmbito das famílias de seus companheiros de trabalho; e não
demorou muito para que a inscrição nas corporações se tornasse a punição oficial
para o criminoso que até ali tivesse conseguido escapar dela.
Sobre o despotismo oriental como antepassado do Totalitarismo moderno, e em
particular do comunista, ocupou-se especialmente Karl A. Wittfogel. Esse autor
parte da concepção marxista do "modo asiático de produção", no qual as exigências
de irrigação em larga escala e das obras de controle das inundações produziram uma
intervenção maciça do Estado, o qual, tornando-se o organizador exclusivo do
trabalho coletivo, se transformou também no patrão da sociedade. O resultado
político foi um despotismo burocrático no qual as divisões de classe foram
substituídas pelas distinções de grupo no seio de uma sociedade burocratizada, e
que Wittfogel descreve como um sistema de "poder total". O poder do despotismo
oriental é total porque não é travado nem por barreiras constitucionais nem por
barreiras sociais; além do mais, ele é exercido em benefício dos governantes e está
concentrado habitualmente nas mãos de um só homem. Ao poder total
correspondem: um terror total, exercido por meio de um controle centralizado do
exército, da polícia e dos serviços de informação, e mediante o recurso à técnica
sistemática do "governo com chicote"; uma submissão total dos súditos, manipulada
pelo medo, simbolizada pela prática constante da prosternação, pela qual a
obediência se torna a máxima das virtudes humanas; e um isolamento total que
envolve o homem comum, o qual teme comprometer-se em qualquer circunstância,
e também o funcionário burocrático e o próprio chefe superior que sempre apóiam
quem tem poder e não confiam em ninguém. A esse despotismo burocrático, que
chama de "semi-empresarial", "hidráulico" e "oriental", Wittfogel acha que se deve
aproximar, em sua substância, como variante do mesmo sistema, o despotismo que
ele chama de "totalmente empresarial", "totalitário" ou "comunista", no qual a
função econômica de base não é constituída pelo simples controle centralizado da
água, mas pelo controle centralizado de todos os recursos fundamentais.
Também Barrington Moore, embora não co-dividindo a colocação de Wittfogel,
estuda o despotismo oriental e em particular o indiano e o chinês, para detectar os
antecedentes históricos do Totalitarismo moderno, sublinhando, a propósito, a obra
de estandardização e de uniformização da burocracia estatal, a existência de um
sistema bem desenvolvido de espionagem e de delação recíproca e uma doutrina
política caracterizada por um racionalismo amoral interessado unicamente na
técnica política mais eficaz. Um precedente ainda mais semelhante ao Totalitarismo
moderno é encontrado por Moore na ditadura teocrática de Calvino em Genebra. O
objetivo de Calvino era construir um Estado cristão sobre o modelo da teocracia
israelita do tempo dos reis e fundado sobre a doutrina da predestinação. A ditadura
de Calvino, que teve o seu período de pleno desenvolvimento durante os últimos
anos da vida do reformador (1555-1564), exerceu grande influência sobre os
hábitos e o pensamento do dia-a-dia da população, chegando a proibir as festas e os
passatempos preferidos de Genebra, a decretar o corte dos vestidos e o tipo de
sapatos que o cidadão devia calçar. Por outro lado, não modificou substancialmente
a ordem política anterior, mas procurou condicioná-la e imbuí-la do espírito do
calvinismo. Nesse sentido, agiu tanto em relação às instituições representativas
criadas pela burguesia quanto em relação às próprias eleições. O principal
instrumento institucional da ditadura foi o consistório, que na origem fora
concebido apenas como um meio para superintender as questões matrimoniais e que
em determinado momento se tornou o centro principal do controle político, moral e
religioso, desenvolvendo também funções de polícia secreta e de censura moral.
Não é o caso de examinar um por um todos os pontos de vista acima expostos para
avaliar detalhadamente o grau de validade ou de analogia que eles encerram.
Podemos admitir na verdade que em todos esses pontos de vista existem elementos
de verdade, no sentido de que existem efetivas similaridades entre os regimes
despóticos e absolutos por eles lembrados e o Totalitarismo moderno. Mas essas
analogias não são decisivas, já que, após terem sido enumerados todos os possíveis
confrontos e terem sido fixados todos os possíveis pontos de contato, o
Totalitarismo conserva, não obstante tudo, algumas características fundamentais
que são especificamente e apenas suas, como reconhecem, aliás, também, alguns
dos autores que pesquisaram sobre esses antecedentes históricos. As características
que permanecem específicas e únicas do Totalitarismo são, de um lado, a
associação da penetração total do corpo social por meio de uma mobilização
permanente e total, que envolve toda a sociedade num movimento incessante de
transformação da ordem social, e, de outro lado, a intensificação até um grau
máximo, sem precedentes na história, dessa penetração-mobilização da sociedade.
Nos precedentes históricos antes lembrados está claramente ausente a mobilização
total da sociedade. Esparta era uma sociedade estática, fundada sobre a exploração
dos ilotas, mas, em contrapartida, Esparta não pedia aos escravos a participação
política nem a sustentação ativa do regime. O mesmo deve ser dito do Império
Romano no tempo de Diocleciano e dos trabalhadores arregimentados
compulsoriamente para as corporações. As sociedades típicas do despotismo
oriental eram também, como reconhecem Wittfogel e Moore, tradicionais e
estacionárias. Nelas, o poder despótico se contentava com a obediência absoluta do
súdito sem exigir a ortodoxia ideológica e a adesão entusiástica ao regime.
Finalmente, a ditadura teocrática de Calvino, que por sua vez tentava modelar a
vida privada dos cidadãos, não possuía um movimento ativista contínuo nem uma
mobilização ininterrupta tendo em vista a transformação radical da sociedade, que
são características típicas do Totalitarismo do século XX. Nesses precedentes
históricos falta também a intensificação máxima da penetração da sociedade, que
distingue o Totalitarismo, e que somente os instrumentos oferecidos pela tecnologia
moderna e a combinação de mobilização e penetração conseguiram obter. Wittfogel
admite que os despotismos orientais, embora tenham conseguido impedir o
crescimento de eficientes organizações secundárias, não tiveram à mão
instrumentos de eficácia e de alcance universal que permitem aos regimes
totalitários estender o controle total às organizações primárias e a cada um dos
cidadãos. Observações semelhantes podem ser feitas para todos os Estados
absolutos de vastas dimensões que o passado recordou, inclusive o regime de
Diocleciano. Também os regimes absolutos de pequenas comunidades, como
Esparta ou Genebra, carecem de força de penetração e de arregimentação da
atividade econômica e da inteira vida social que encontramos no Totalitarismo. De
forma geral, quando passamos "da doutrina e do aparelho de controle desses
regimes pré-industriais ao exame da sua influência sobre a população governada",
afirma precisamente Moore, "percebemos imediatamente uma diferença
fundamental entre as velhas formas e o totalitarismo contemporâneo. Os controles
do Totalitarismo moderno incidem mais profundamente sobre o tecido social em
grau superior ao de qualquer outro período histórico. Sob esse aspecto, são
realmente únicos".
As características únicas do Totalitarismo tornaram-se possíveis, por seu lado,
graças a condições sociais particulares realizadas no mundo contemporâneo. Elas
são reavivadas na formação da sociedade industrial de massa, na persistência de
uma arena mundial dividida e no desenvolvimento da tecnologia moderna. 1) A
industrialização tende a produzir, de um lado, a desvalorização dos grupos
primários e intermédios e a atomização dos indivíduos, e desse modo torna possível
um decisivo incremento da penetração política, e, de outro lado, produz a
urbanização, a alfabetização, a secularização cultural e o ingresso das massas na
política, impondo, assim, um incremento decisivo da mobilização política. É por
isso que o Totalitarismo, como forma extrema do despotismo moderno, teve de criar
coercitivamente uma sustentação de massa virtualmente coextensiva a toda a
sociedade. 2) Além disso, nas condições sociais criadas pela industrialização, a
persistência de uma arena mundial dividida, e, por conseqüência, insegura e
ameaçadora, tende a envolver na guerra e na preparação bélica parcelas cada vez
maiores dos recursos e das atividades da nação, até transformar o país inteiro numa
enorme máquina de guerra. Dessa forma, a anarquia internacional favorece um
crescimento explosivo da penetração-mobilização, especialmente nos países mais
expostos aos perigos externos. 3) Finalmente, ocorre também lembrar que a
penetração-mobilização totalitária da sociedade não seria atuável sem os
instrumentos colocados à disposição pela tecnologia moderna. Basta pensar no
efeito que o desenvolvimento tecnológico exerceu sobre os instrumentos da
violência, sobre os meios de comunicação de massa, sobre os meios de transporte,
sobre as técnicas de organização, de registro e de cálculo, que tornam possível a
direção central da economia, e ainda sobre as técnicas de vigilância e de controle da
polícia secreta.
III. TOTALITARISMO FASCISTA E TOTALITARISMO COMUNISTA. As
diferenças entre Totalitarismo fascista e Totalitarismo comunista devem ser
reportadas às diferenças entre fascismo e comunismo, em geral. Estas últimas são,
antes de tudo, diferenças de ideologia e de base social. A ideologia comunista é um
conjunto de princípios, coerente e elaborado, que descreve e orienta para uma
transformação total da estrutura econômico-social da comunidade. A ideologia
fascista, que se constituiu na mais radical versão nazista, é um conjunto de idéias ou
de mitos, bem menos coerente e elaborado, que não prevê nem orienta para uma
transformação total da estrutura econômico-social da comunidade. A ideologia
comunista é humanística, racionalista e universalista: seu ponto de partida é o
homem e sua razão; é por isso que ela assume a forma de um credo universal que
abrange todo o gênero humano. A ideologia fascista é organicista, irracionalista e
anti-universalista: seu ponto de partida é a raça, concebida como uma entidade
absolutamente superior ao homem individual. Ela toma por isso a forma de um
credo racista que trata com desprezo, como uma fábula, a idéia ética da unidade do
gênero humano. A ideologia comunista pressupõe a bondade e a perfectibilidade do
homem e tem em mira a instauração de uma situação social de plena igualdade e
liberdade: nesse quadro a "ditadura do proletariado" e a violência são simples
instrumentos, necessários mas temporários, para alcançar o escopo final. A
ideologia fascista pressupõe a corrupção do homem e tem em mira a instauração do
domínio absoluto de uma raça acima de todas as outras: a ditadura, o Führerprinzip
e a violência são princípios de governo permanentes, indispensáveis para manter
sujeitas e para liquidar as raças inferiores. A ideologia comunista, enfim, é
revolucionária: apresenta-se como a herdeira dos ideais do iluminismo e da
Revolução Francesa, aos quais pretende dar um efetivo conteúdo econômico e
social com uma revolução profunda da estrutura da sociedade. A ideologia fascista
é reacionária: ela é a herdeira das tendências mais extremas do pensamento contrarevolucionário
do século passado, em seus componentes irracionalistas, racistas e
radicalmente antidemocráticos; e em certos aspectos como os mitos teutônicos, o
juramento pessoal perante o chefe, a ênfase dada à honra, o sangue e a terra,
voltam-se para o passado até uma ordem pré-burguesa.
As diferenças de base social dizem respeito, de maneira geral, ao ambiente
econômico-social, e, de maneira especial, à base de sustentação de massa e de
recrutamento do novo regime, assim como aos comportamentos recíprocos do novo
regime e da velha classe dirigente. O comunismo se instala habitualmente numa
sociedade onde o processo de industrialização e de modernização se está iniciando
ou se encontra no primeiro estágio e assume a tarefa de uma industrialização e de
uma modernização forçada e rápida. O fascismo normalmente se instala numa
sociedade onde o processo de industrialização e de modernização já está avançado e
num ponto bom. Seu objetivo não é tanto a industrialização e a modernização da
sociedade, mas sim a mobilização e a obediência de uma sociedade já
industrializada e modernizada aos próprios fins. No comunismo, a base de
sustentação de massa do regime e a fonte privilegiada do recrutamento da elite são
constituídas pela classe operária e pelo proletariado urbano. No fascismo, a base de
sustentação de massa do regime e a fonte privilegiada do recrutamento da elite são
constituídas pela classe pequeno-burguesa: empregados, camponeses, pequenos
comerciantes, militares e intelectuais frustrados, que se sentem esmagados entre a
grande burguesia e as organizações do proletariado. A essa sustentação do fascismo
se juntam bem depressa a finança e o apoio dos grandes financeiros e dos grandes
industriais. O comunismo, finalmente, debela e liquida completamente a velha
classe dirigente, tanto a econômica como a da administração do Estado. O fascismo
mantém em grande parte a velha classe dirigente, seja econômica, seja burocrática
ou militar, procurando fazer dela, antes de tudo, uma aliada, para depois convertê-la
num instrumento da própria política.
Essas diferenças podem ser atenuadas ou retificadas num caso ou em outro. Em
particular, pelo que toca à ideologia, deve-se observar que a ideologia nazista,
embora não exija uma transformação total da estrutura econômico-social da
comunidade, impõe entretanto uma transformação radical da ordem político-social:
ela pretendia revolucionar a carta da Alemanha e da Europa, eliminando os hebreus
e instaurando o domínio absoluto da raça superior sobre as inferiores. O fato de a
ideologia nazista não ter dirigido a obra de transformação para as relações
econômicas e de ter orientado parcialmente a agressividade para fora e não para
dentro do corpo social não muda a circunstância de que ela tem em vista uma
transformação radical da ordem político-social. Por outro lado, a ideologia
comunista nem sempre foi uma doutrina coerente e uma guia coerente da ação
política: precisamente na fase totalitária do regime soviético, as bruscas e arbitrárias
mudanças de rumo por parte de Stalin mostram que ela foi em grande parte uma
racionalização da conduta do ditador. Quanto à base social, observe-se que antes da
Revolução os bolcheviques receberam apoio não só do proletariado, mas ainda de
uma parte da burguesia; e que da mesma forma os nazistas tiveram o apoio não só
da pequena e da grande burguesia, mas também de uma parte do proletariado
urbano, se bem que em proporção reduzida em razão de seu peso reduzido em
relação à população total. Além disso, se é verdade que parte da grande finança e da
grande indústria financiou e apoiou os nazistas nas fases da instauração e da
consolidação do regime, da mesma forma é verdadeiro que, quando o regime entrou
em sua fase totalitária, a grande finança e a grande indústria se tornaram
instrumentos da política nazista em maior grau do que esta era instrumento
daquelas.
Entretanto, feitas essas correções, como é justo que se faça, o resultado não muda
muito. Em seu conjunto, as diferenças de base social e de ideologia acima
enunciadas permanecem reais e profundas; e, na perspectiva por elas delineada,
fascismo e comunismo são dois fenômenos clara e definitivamente contrapostos.
Mas o que mais se deve objetar àqueles que destacam tais diferenças entre fascismo
e comunismo é que elas não são um argumento pertinente contra o uso do conceito
de Totalitarismo para designar tanto regimes fascistas como comunistas, ou melhor,
para designar uma certa fase histórica do sistema comunista soviético e uma certa
fase histórica do sistema nazista alemão. Não são um argumento pertinente as
diferenças de ideologia porque, com base em ideologias de conteúdos diferentes,
podemos construir praxes de domínio político substancialmente análogas. E não são
um argumento pertinente as diferenças de base social porque, partindo de um
ambiente econômico-social diferente e de uma composição social de sustentação de
massa diferente, podemos chegar, igualmente, a praxes de domínio político
substancialmente análogas. Na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stalin verificouse
precisamente esse fenômeno. Em cima de bases sociais e de ideologias diferentes
criou-se uma praxe política fundamentalmente semelhante, feita de um partido
monopolista, de uma ideologia de transformação da sociedade, do poder absoluto de
um chefe, de um terror sem precedentes e, por conseqüência, da destruição de toda
a linha estável de distinção entre aparelho político e sociedade. Se chamarmos e
interpretarmos essa praxe política por meio do nome e do conceito de Totalitarismo,
então poderemos e deveremos usar tal nome e tal conceito todas as vezes que (e só)
existir a praxe correspondente, quer se realize num sistema fascista ou num sistema
comunista. Daí se segue que é legítimo falar de "Totalitarismo fascista" e de
"Totalitarismo comunista" no sentido indicado. Mas segue-se também que é
ilegítimo usar tais expressões se com elas quisermos dizer que o comunismo e o
fascismo são fenômenos necessariamente totalitários por natureza. No que toca ao
comunismo, em sua complexa história, a praxe totalitária se realizou apenas no
regime stalinista. Por sua vez, o fascismo não é também essencialmente totalitário,
não obstante sua ideologia, que concebe a violência e a personalização do poder
como princípios permanentes, se aproximar muito mais da essência do
Totalitarismo.
Por outro lado, as diferenças entre fascismo e comunismo produzem efeitos
relevantes na própria praxe totalitária. Esta assume, nos diferentes sistemas,
caracteres parcialmente diversos, em relação ao direcionamento político geral do
sistema político; e adquire, além disso, nos diferentes sistemas, uma diversa
dinâmica evolutiva. O objetivo político geral do comunismo é a industrialização e a
modernização forçadas em vista da construção de uma sociedade "sem classes". O
objetivo geral do fascismo é a instauração da supremacia absoluta e permanente da
raça eleita. Por isso, nos dois tipos de sistema, o Totalitarismo está ligado, por
exemplo, a uma política econômica diferente: de um lado, procede-se a uma
estatização completa das atividades econômicas e, de outro, mantém-se a máxima
parte da economia na esfera privada, buscando dobrá-la aos próprios fins; o
Totalitarismo está ligado também a um tipo de violência diferente: em certos casos,
o resultado mais característico é o campo de trabalhos forçados, expressão da
violência como meio para construir uma nova ordem; em outros, o resultado mais
característico é o campo de concentração, expressão da vontade de destruição pura e
simples de uma raça considerada inferior. Quanto à dinâmica evolutiva diferente,
podemos lembrar a distinção feita por A. J. Groth, que se baseia no diferente grau
de vulnerabilidade dos regimes totalitários. Os sistemas comunistas são menos
vulneráveis porque destroem a velha classe dirigente e replasmam integralmente a
estrutura social. Por isso, uma vez consolidados e após criarem uma sociedade
substancialmente homogênea, podem diminuir a violência de massa e a política
totalitária e empregar instrumentos de governo mais apoiados na persuasão e no
consenso. Contrariamente, os sistemas fascistas são mais vulneráveis, porque
deixam intactas, em larga escala, a velha classe dirigente e a mesma estrutura
econômico-social. Dessa forma, eles vão provavelmente ao encontro de crises
ocorrentes, provocadas pelos antagonismos que se produzem com este ou aquele
grupo da velha classe dirigente, e das quais não podem sair vitoriosos, senão por
meio de uma nova intensificação da violência de massa e da política totalitária. De
resto, como já foi observado, a violência de massa, para o sistema nazista, é um
princípio permanente de governo para conseguir e conservar o domínio da raça
superior sobre as inferiores.
Compreende-se, a partir dessa perspectiva, por que o fato de as teorias clássicas do
Totalitarismo ignorarem ou subestimarem de maneira drástica as profundas
diferenças entre fascismo e comunismo não deixou de ter notáveis conseqüências
negativas. Quanto à teoria de Friedrich e Brzezinski, essa ignorância ou subestima é
um dos fatores que estão na origem da indevida extensão do conceito de
Totalitarismo a todos os regimes comunistas; e da desconcertante previsão — feita
em 1956 na base da tendência anterior dos "sistemas fascistas" e dos "sistemas
comunistas" — de que "as ditaduras totalitárias continuarão a tornar-se cada vez
mais totais, mesmo que o ritmo dessa intensificação possa diminuir".
No que diz respeito a Arendt, a ignorância ou subestima a que me referi é um dos
fatores que explicam alguns aspectos um tanto carregados de sua interpretação do
fenômeno totalitário. Para Arendt, o Totalitarismo é uma espécie de essência
política inteiramente fechada em si mesma, que não é alterada pelos diversos
ambientes econômico-sociais e pelo conteúdo da ideologia: a sua natureza é a
transformação dos homens em feixes de reação intercambiável, uma transformação
posta em movimento pela lógica deformada da ideologia e não pelo seu conteúdo.
Ora, essa definição da natureza da ideologia me parece um modo de difundir uma
interpretação dos efeitos de certas instituições do terror totalitário, como os campos
de concentração, com o fim mesmo do domínio totalitário; e a confusão tornou-se
possível, entre outras coisas, pelo fato de que Arendt vai muito além do processo da
abstração e não presta atenção suficiente aos contextos e às conotações
diferenciadas das diversas experiências totalitárias. Considerado sob esse último
ponto de vista, o Totalitarismo aparece, muito mais simplesmente, como uma
tendência-limite da ação política na sociedade de massa, um certo modo extremo de
fazer política, caracterizado por um grau máximo de penetração e de mobilização
monopolística da sociedade, que ganha corpo na presença de determinados
elementos constitutivos. O Totalitarismo, como tal, assume diversos aspectos e está
associado a diversos fins e diversas metas, conforme o sistema político particular no
qual encarna e o relativo ambiente econômico-social.
IV. O PROBLEMA DA EXTENSÃO DO CONCEITO DE TOTALITARISMO. A
crítica revisionista ataca a tendência representada por Friedrich e traduzida na
linguagem prática da política em alargar a aplicação do conceito de Totalitarismo a
todos os regimes comunistas. Contra a liceidade dessa operação, os críticos
procuram mostrar a heterogeneidade substancial entre o regime stalinista e os outros
regimes comunistas, assim como a descontinuidade entre o regime stalinista e o
regime soviético pós-stalinista. Nesse sentido, a crítica revisionista dirige sua
atenção para três pontos: a diversidade do papel e do peso do terror; a diversidade
da personalização do poder; a atenuação da importância da ideologia e, de forma
geral, de muitos controles típicos do domínio totalitário.
Que os primeiros autores que elaboraram e aplicaram o conceito de Totalitarismo
tivessem visto no terror um elemento fundamental desse conceito, não podemos pôr
em dúvida. Para H. Arendt, como vimos, o terror "é a essência do Totalitarismo";
para Brzezinski sua "característica mais universal" (The permanent purge, 1956);
para Merle Fainsod é "o eixo do Totalitarismo" (How Russia is ruled, 1953); para
Friedrich e Brzezinski, seu "nervo vital". Segundo essa colocação inicial, o terror
totalitário se diferencia do terror usado pelos velhos regimes autoritários tanto pela
qualidade como pela quantidade. Ele atinge até os inimigos presumidos ou
"objetivos" e outras vítimas inocentes: nesse caso, as vítimas não se tornam objeto
do terror porque são "inimigos" ou "traidores", mas tornam-se "inimigos" ou
"traidores" porque são objeto do terror; atinge profundamente camadas inteiras ou
grupos profissionais ou grupos étnicos, e os atinge de modo contínuo e capilar:
todos se sentem sob o constante controle da polícia e ninguém pode dizer-se livre
do terror totalitário. Essa espécie de terror é um instrumento essencial do domínio
totalitário: inibe qualquer tipo de oposição, força a adesão e a sustentação
entusiástica do regime e conduz a um ponto máximo a penetração e a mobilização
política da sociedade.
Ora, a ação do terror totalitário — assim entendido — se encontra na Rússia
stalinista dos anos 1930, especialmente a partir de 1934, e depois também no
período pós-guerra, por meio dos grandes expurgos, da liquidação de grupos sociais
inteiros e dos quadros dirigentes do partido, das deportações em massa, dos campos
de concentração e de trabalho forçado; e na Alemanha hitlerista, especialmente a
partir de 1937-1938, no pleno predomínio das SS sobre as demais organizações
policiais e sobre o Ministério do Interior, no pogrom contra os hebreus, na
deportação e na eliminação de hebreus, de "ociosos", de "anti-sociais", de doentes
mentais e outros, e nos campos de concentração e de extermínio. Tudo era
realizado, quer na Rússia, quer na Alemanha, por meio de uma densa rede de
vigilância e de espionagem policial. Tal ação de terror totalitário não se encontra na
Itália fascista nem nos países comunistas do Leste europeu, salvo alguns episódios
isolados do período do máximo poder de Stalin. Também não se encontra na Rússia
pós-stalinista, cuja diferença mais macroscópica em relação ao período precedente
consiste precisamente num declínio substancial do terror em termos de quantidade e
de qualidade, como demonstram muitos testemunhos de cidadãos soviéticos e
segundo confirmação de numerosos estudos de observadores especializados do
sistema político soviético. Essa mudança está expressa numa multiplicidade de
inovações normativas e institucionais, como a abolição da comissão especial do
Ministério do Interior, que tinha o poder de deportar sem processo para os campos
de concentração, a abolição de um poder análogo da polícia política, a abolição dos
processos secretos contra as pessoas acusadas de delitos contra o Estado, as
limitações impostas à jurisdição dos tribunais militares, a redução das sanções
cominadas para violações da disciplina do trabalho, a introdução de numerosas
garantias processuais, e assim por diante. Mas, para além de todas essas inovações
normativas e institucionais, o que menos aconteceu na Rússia pós-stalinista foi a
onda de terror onipresente que pesava em todos os setores da vida social. O regime
soviético permanece uma ditadura monopartidária, que recorre amplamente a meios
coercitivos; mas o dinamismo específico do terror totalitário é uma lembrança do
passado.
A conclusão que é preciso tirar dessas considerações é a mesma que desde o início
tirou H. Arendt: a limitação do campo de aplicação do conceito de Totalitarismo
apenas para os regimes de Hitler na Alemanha e de Stalin na Rússia. Vários autores
preferiram, por sua vez, modificar o conceito de Totalitarismo no sentido de uma
atenuação radical do papel do terror, para poder estender sua aplicação a todos os
regimes comunistas e à Rússia pós-stalinista. M. Fainsod, que havia vislumbrado no
terror o "ponto de apoio" do Totalitarismo, falou mais tarde de um "Totalitarismo
racionalizado", no qual o terror tem simplesmente "um certo lugar" (How Russia is
ruled, 2a ed., 1963). Friedrich, que havia definido o terror como o "nervo Vital do
terrorismo", afirmou mais: que havia supervalorizado o fenômeno que no
"Totalitarismo amadurecido" se reduz à presença de um "terror psíquico" e de "um
consenso geral" (Totalitarian dictatorship and autocracy, 2a ed., 1965). E.
Brzezinski, que identificara no terror a "característica mais universal do
Totalitarismo", abandonou mais tarde essa característica falando de "um
Totalitarismo voluntário" (Ideology and power in Soviet Union, 1962). Mas essas
correções de rumos, esclarece a crítica revisionista, servem apenas para justificar a
incorreta postura de fazer alinhar sob o conceito comum de Totalitarismo tipos de
regimes políticos que são visivelmente diferentes em relação à função do terror, e
por meio desse processo em relação ao grau de penetração e de mobilização política
da sociedade, à qual a noção de Totalitarismo se refere de maneira particular.
Um outro ponto acentuado é o de que os dois protótipos de regime totalitário, que
são a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin, se diferenciam dos outros sistemas,
que se pretendem atrelar ao conceito de Totalitarismo, por uma personalização do
poder levada até os limites mais extremos. Deveremos lembrar que Friedrich e
Brzezinski não atribuem uma importância estrutural à personalização do poder. Por
seu lado, Arendt, que coloca exatamente a Alemanha de Hitler e a Rússia de Stalin
como pontos de referência, sublinha várias vezes e de modo claro o papel crucial do
ditador; mas depois, quase a despeito de suas próprias afirmações, não faz disso um
elemento constitutivo do conceito de Totalitarismo. Ele procura imputar toda a
brutalidade do domínio totalitário à lógica deformada da ideologia: uma
interpretação sobre a qual pesa sua orientação conservadora e veladamente
tradicionalista e sua hostilidade para com toda e qualquer ideologia política. Os
dados de fato que temos à disposição, tanto para a Alemanha de Hitler quanto para a
Rússia de Stalin, convencem-nos, bem ao contrário, de que o terror totalitário foi
desligado não apenas de uma ideologia de transformação radical da sociedade, mas
também, e de forma determinante, da ação do poder pessoal, ou seja, da estratégia
adotada pelo ditador para conservar seu poder e dos traços característicos de sua
personalidade.
Essa tese, segundo a qual o poder pessoal do ditador é uma condição essencial para
o funcionamento do domínio totalitário, foi fortemente defendida por Robert C.
Tucker. Num ensaio publicado em 1961, ele pôs à luz as deficiências do conceito
clássico de Totalitarismo como instrumento de análise comparada; mas, por um
lado, não determina os aspectos comuns que os regimes totalitários dividem com
outros regimes e, por outro, não especifica de modo satisfatório os mesmos aspectos
que distinguem os regimes totalitários. Quanto ao primeiro ponto, Tucker propôs a
categoria geral dos regimes revolucionários de massa e monopartidários,
caracterizados por um movimento revolucionário conseguido mediante uma
mobilização mais ou menos intensa das massas e dirigido por um partido único:
fazem parte dessa categoria tanto os sistemas monopartidários comunistas como os
sistemas fascistas e nacionalistas. Quanto ao segundo ponto, Tucker se deteve na
análise da presença de um líder pessoal que se liberta do controle da oligarquia do
partido e prefere governar em grande parte com a policia secreta e com o terror total
e permanente, para assegurar uma obediência absoluta às suas ordens, tanto por
parte do homem comum, como por parte dos mais altos dignatários do regime. Essa
característica é comum — dizia Tucker — aos "regimes fascistas" e à ditadura
stalinista (mas não aos demais regimes comunistas, incluindo a ditadura soviética
pós-stalinista e a pré-stalinista).
Voltando ao tema, num ensaio de 1965, Tucker restringiu o âmbito dos regimes
totalitários apenas à Alemanha do tempo de Hitler e à Rússia de Stalin, defendendo
a opinião de que o maior defeito das teorias clássicas do Totalitarismo está em
atribuir exclusivamente ao fanatismo ideológico todo o dinamismo do poder e do
terror totalitário, com a conseqüência de esquecer ou minimizar de forma drástica a
incidência do fator pessoal, representado pelo ditador. Tal incidência está associada
não apenas ao fato de que Hitler e Stalin eram autocratas absolutos que detinham
uma soma de poder sem precedentes na história, mas ainda com alguns traços
comuns (paranóicos) da sua personalidade, que constituíram um forte impulso que
motivou seu comportamento de ditadores totalitários. Com base nos fatos que
conhecemos, concluía Tucker, não se pode deixar de reconhecer que a
personalização do poder e portanto a personalidade do chefe é um dos componentes
regulares e constitutivos da "síndrome totalitária".
Recentemente, a pesquisa sobre o papel crucial da personalização do poder no
domínio totalitário se desenvolveu. Leonard Schapiro, que é mais um defensor do
que um crítico do conceito de Totalitarismo, acha que a primeira e a mais destacada
característica do fenômeno seja exatamente a presença de um chefe. Tal presença é
um fator mais importante do que a ideologia, uma vez que tanto o conteúdo quanto
a aplicação desta tem no chefe seu árbitro exclusivo; é também mais importante do
que o partido, na medida em que o chefe procura subordinar este à sua vontade, e,
de maneira geral, mais importante do que qualquer outro fator e por isso mais
determinante (Schapiro, 1969). Também, Hannah Arendt, na introdução à terceira
edição de seu livro (1966), sentiu a necessidade de chamar novamente a atenção, de
maneira mais pronunciada, sobre o papel do ditador totalitário, afirmando entre
outras coisas que o regime totalitário deixou de existir na Rússia com a morte de
Stalin, assim como deixou de existir na Alemanha com a morte de Hitler. "Não foi o
fim da guerra, mas a morte de Stalin, oito anos depois, que foi decisivo. Como pode
ser observado olhando as coisas em retrospectiva, esta morte não foi simplesmente
seguida por uma crise de sucessão e por um degelo temporário, mas por um
autêntico e inequívoco processo de destotalitarização".
No que diz respeito à mudança do regime soviético desde os tempos da ditadura
totalitária de Stalin até hoje, é particularmente pertinente a distinção feita por
Samuel P. Huntington (que não releva o elemento terror) entre sistemas
monopartidários revolucionários e sistemas monopartidários estabilizados. Essa
distinção constitui a terceira perspectiva sob a qual pode ser considerado, em
sentido revisionista, o problema da extensão do conceito de Totalitarismo. Na
verdade, dos sistemas monopartidários revolucionários, que tendem a transformar a
sociedade e impõem por conseqüência uma politização mais ou menos avançada da
própria sociedade, fazem parte os próprios regimes totalitários (especialmente os de
tipo comunista), ainda que Huntington não enfrente a questão da sua individuação
específica. O que interessa a esse cientista político é descrever a evolução e a
mudança dos regimes monopartidários revolucionários em geral. Mediante um
complexo processo de transformação, consolidação e adaptação, eles se convertem
em sistemas claramente diferentes: os regimes monopartidários estabilizados, nos
quais não apenas existe a tendência a dar menor importância à personalização do
poder, mas também se atenua o problema da ideologia e se dá apoio significativo
aos mesmos controles políticos sobre uma sociedade que se articula em atividades
cada vez mais complexas e diversificadas. Com o processo de transformação, tem
lugar a destruição da velha ordem e a sua substituição por novas instituições
políticas e por novos modelos sociais. Uma vez que o principal do processo de
transformação foi posto em ato, a concentração sobre a ideologia e sobre a liderança
carismática torna-se disfuncional para a manutenção do sistema, o qual tende por
isso a consolidar-se com a instauração da supremacia do partido — em lugar do
chefe em pessoa — como fonte da legitimidade e do poder. Por outro lado, a
criação de uma sociedade relativamente homogênea leva consigo a emergência de
novas forças sociais (uma classe técnico-empresarial, de grupos de interesse, uma
inteligência dotada de espírito de independência), que obrigam o partido a sujeitarse
a um processo de adaptação, com o qual redefine o próprio papel na sociedade.
Por fim, o sistema monopartidário estabilizado, que é o resultado do processo de
transformação, consolidação e adaptação, difere do sistema monopartidário
revolucionário pelas seguintes razões: a ideologia é menos importante como
elemento plasmador dos fins e das decisões dos chefes, enquanto as considerações
pragmáticas assumem maior valor; a liderança política tende a ser oligárquica,
burocrática e institucionalizada, em vez de ser pessoal, carismática e autocrática; as
fontes de iniciativa estão localizadas entre as elites tecnocráticas e empresariais em
vez de se concentrarem apenas na elite do partido, transformando-se o aparelho do
partido em mediador entre a estabilidade e a mudança; surge uma pluralidade de
importantes grupos de interesse e o aparelho partidário torna-se o agregador e o
regulador de interesses em competição; na ribalta aparece uma inteligência dotada
de espírito de independência que se ocupa da crítica ao sistema; a participação
popular não é mais o produto exclusivo da mobilização do partido, mas também da
competição eleitoral no seio do mesmo partido. Esse modelo do sistema
monopartidário estabilizado, que pode aplicar-se aos sistemas comunistas do Leste
europeu e em muitos dos seus aspectos característicos também ao atual regime
político da União Soviética, é substancialmente diferente do sistema monopartidário
revolucionário. Em certos casos, as diferenças que existem entre esses tipos de
regime, afirma Huntington, podem ser distintas das que dividem um regime
monopartidário revolucionário do velho regime czarista tradicional. A conclusão é
evidente: não se pode aplicar aos regimes monopartidários estabilizados as
categorias próprias para interpretar os regimes monopartidários revolucionários ou,
e ainda com maior razão, as categorias adequadas para interpretar os sistemas
especificamente revolucionários e monopartidários, que são os regimes totalitários.
V. CONCLUSÃO. Radicalizando as críticas a que a noção foi submetida, alguns
autores defendem que Totalitarismo é um epíteto emocional da luta ideológica e
política em vez de ser um conceito descritivo da ciência; que teve essencialmente a
função de justificar a política americana durante a guerra fria e que convém por isso
eliminá-lo do léxico da análise política. Essa acusação não é, quanto ao seu
conteúdo, fora de propósito, mas ultrapassa decisivamente o signo. Por uma parte, é
difícil negar que a noção de Totalitarismo tenha sido usada para importantes e
inflexíveis usos ideológicos no período da guerra fria. Mas, por outra parte, o que
estava em jogo nessa instrumentalização ideológica era a extensão do campo de
aplicação do conceito de Totalitarismo, não o conceito em si mesmo. Alargar o
nome de Totalitarismo a todos os sistemas comunistas teve o significado políticoideológico
de canalizar contra o adversário a deprecação e a hostilidade que a
palavra leva em si, porque designa particularmente, dentro de uma significação já
consolidada, particulares experiências políticas do passado recente que foram objeto
de uma condenação quase unânime. Em si mesmo, entretanto, o conceito de
Totalitarismo, desde que seja reconduzido à sua função de representar aquelas
experiências políticas, e apenas essas, não causa nenhuma deformação ideológica,
mas constitui um importante instrumento descritivo com todas as condições
regulares de fazer parte do vocabulário da análise política. Ele designa, na verdade,
um certo modo extremo de fazer política na sociedade de massa, bem real e
claramente identificável, que se manifestou em nosso século com conotações de
novidade e de grande relevância histórica.
(Atingido o limite máximo de texto para o verbete! Para exibir o restante do texto
desse verbete, clique aqui.)
Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília


DICIONÁRIO DE POLÍTICA
Autoritarismo
I. Problemas de definição. O adjetivo "autoritário" e o substantivo autoritarismo,
que dele deriva, empregam-se especificamente em três contextos: a estrutura dos
sistemas políticos, as disposições psicológicas a respeito do poder e as ideologias
políticas. Na tipologia dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os
regimes que privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou
menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só
pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições
representativas. Nesse contexto, a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos
são reduzidas à expressão mínima e as instituições destinadas a representar a
autoridade de baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas.
Em sentido psicológico, fala-se de personalidade autoritária quando se quer denotar
um tipo de personalidade formada por diversos traços característicos centrados no
acoplamento de duas atitudes estreitamente ligadas entre si: de uma parte, a
disposição à obediência preocupada com os superiores, incluindo por vezes o
obséquio e a adulação para com todos aqueles que detêm a força e o poder; de outra
parte, a disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e
em geral todos aqueles que não têm poder e autoridade. As ideologias autoritárias,
enfim, são ideologias que negam de uma maneira mais ou menos decisiva a
igualdade dos homens e colocam em destaque o princípio hierárquico, além de
propugnarem formas de regimes autoritários e exaltarem amiudadas vezes como
virtudes alguns dos componentes da personalidade autoritária.
A centralidade do princípio de Autoridade (v.) é um caráter comum do
autoritarismo em qualquer dos três níveis indicados. Como conseqüência, também a
relação entre comando apodítico e obediência incondicional caracteriza o
autoritarismo. A autoridade, no caso, é entendida em sentido particular reduzido, na
medida em que é condicionada por uma estrutura política profundamente
hierárquica, por sua vez escorada numa visão de desigualdade entre os homens, e
exclui ou reduz ao mínimo a participação do povo no poder e comporta
normalmente um notável emprego de meios coercitivos. É claro, por conseguinte,
que do ponto de vista dos valores democráticos o autoritarismo é uma manifestação
degenerativa da autoridade. Ela é uma imposição da obediência e prescinde em
grande parte do consenso dos súditos, oprimindo sua liberdade.
Por outro lado, do ponto de vista de uma orientação autoritária, é o igualitarismo
democrático que não está em condições de produzir a "verdadeira" autoridade.
Neste último sentido, diversos autores, especialmente alemães dos anos 1930,
propugnaram a doutrina do "Estado autoritário". Do mesmo modo, a "personalidade
autoritária" foi em parte antecipada pelo psicólogo nazista E. R. Jaensch, o qual
descreveu, em 1938, um tipo psicológico notavelmente semelhante avaliando-o
tanto de forma positiva como de forma negativa.
Existe portanto um denominador comum no significado que o termo autoritarismo
assume nos três contextos indicados, embora nesse campo haja conveniência de não
se ir além dos limites. Um fundo de significado comum não quer dizer identidade,
nem tampouco plena coerência de significado. É fato que o autoritarismo é um dos
conceitos que, tal como "ditadura" e "totalitarismo", surgiram e foram usados em
contraposição a "democracia", pretendendo-se acentuar num caso ou noutro
parâmetros antidemocráticos. Na verdade, as fronteiras entre esses conceitos são
pouco claras e muitas vezes até instáveis em relação aos diferentes contextos. No
nosso caso são relevantes sobretudo as relações entre autoritarismo e Totalitarismo
(v.) e essas relações tendem a ser diferentes nos três níveis de autoritarismo acima
indicados. A mais ampla extensão de significado de autoritarismo acha-se nos
estudos sobre a personalidade e sobre atitudes autoritárias. Apesar do conceito de
"personalidade autoritária" ter sido criado originariamente para descrever uma
síndrome psicológica dos indivíduos "potencialmente fascistas", investigações
posteriores estenderam o conceito ao próprio autoritarismo de esquerda e indagaram
os comportamentos autoritários das classes baixas da mesma forma com que
analisaram os comportamentos das classes médias ou altas. Em geral, nesse setor de
pesquisa não se faz nenhuma distinção entre autoritarismo e totalitarismo. No
campo das ideologias políticas, a área de significado do autoritarismo é incerta. Mas
existe uma tendência significativa para limitar o uso do termo para as ideologias nas
quais a acentuação da importância da autoridade e da estrutura hierárquica da
sociedade tem uma função conservadora. Nesse sentido, as ideologias autoritárias
são ideologias da ordem e distinguem-se daquelas que tendem à transformação mais
ou menos integral da sociedade, devendo entre elas ser incluídas as ideologias
totalitárias. Em relação aos regimes políticos, enfim, o termo autoritarismo é
empregado em dois sentidos: um deles, muito generalizado, compreende todos os
sistemas não democráticos caracterizados por um baixo grau de mobilização e de
penetração da sociedade. Este último significado coincide em parte com a noção de
ideologia autoritária. Mas só em parte, pois existem tanto os regimes autoritários de
ordem como os regimes autoritários voltados para uma transformação, embora
limitada, da sociedade.
Em vista de tudo o que acabamos de expor, um fundo de significado comum não
quer dizer plena coerência de significado. Mais importante do que isso é sublinhar
que a existência de um fundo de significado comum não inclui a necessidade da copresença
fatual dos três níveis de autoritarismo. Razoavelmente pode supor-se que
exista uma certa congruência entre eles. Uma personalidade autoritária, por
exemplo, sentir-se-á provavelmente à vontade numa estrutura de poder autoritária e
achará provavelmente genial uma ideologia autoritária. Mas isso não significa que
os três aspectos do autoritarismo estejam sempre e necessariamente presentes ao
mesmo tempo. Em que grau e com que freqüência os três níveis de autoritarismo se
acham juntos ou separados nas diversas situações sociais são um quesito cuja
resposta não pode ser prejudicada, na partida, pelas definições, mas deve ser
pacientemente determinada por meio da investigação empírica. Em linha de
princípio, nada exclui que crenças democráticas sejam impostas por meio de
métodos autoritários. Ou que entre chefes de um Estado autoritário haja indivíduos
não marcados por uma personalidade autoritária; ou que um regime autoritário de
fato se acoberte por fora de uma ideologia democrática ou de uma ideologia
totalitária que perdeu sua carga propulsiva e se transformou numa simples veste
simbólica.
II. As ideologias autoritárias. Já dissemos que não existe coerência plena de
significado entre o autoritarismo ao nível de ideologia e o autoritarismo ao nível de
regime político. A estrutura mais íntima do pensamento autoritário acha
correspondência não em qualquer sistema autoritário, e sim no tipo puro de regime
autoritário conservador ou de ordem. Nesse sentido, o pensamento autoritário não
se limita a defender uma organização hierárquica da sociedade política, mas faz
dessa organização o princípio político exclusivo para alcançar a ordem, que
considera como bem supremo. Sem um ordenamento rigidamente hierárquico, a
sociedade vai fatalmente ao encontro do caos e da desagregação. Toda a filosofia
política de Hobbes, por exemplo, pode ser interpretada como uma filosofia
autoritária da ordem. Mas é uma teoria autoritária singular e de certo modo
anômala, porque toma a iniciativa – da igualdade entre os homens e deduz a
necessidade da obediência incondicional ao soberano por meio de um processo
rigorosamente racional. Geralmente, as doutrinas autoritárias, ao contrário, pelo
menos as modernas, são doutrinas anti-racionalistas e antiigualitárias. Para elas, o
ordenamento desejado pela sociedade não é uma organização hierárquica de
funções criadas pela razão humana, mas uma organização de hierarquias naturais,
sancionadas pela vontade de Deus e consolidadas pelo tempo e pela tradição ou
impostas inequivocamente pela sua própria força e energia interna. De costume, a
ordem hierárquica a preservar é a do passado; ela se fundamenta na desigualdade
natural entre os homens.
É evidente que o problema da ordem é um problema geral de todo sistema político;
e, como tal, não pode ser um monopólio do pensamento autoritário. Também em
muitas exposições da ideologia liberal e da ideologia democrática acha-se, entre
outros princípios, uma valorização da importância da autoridade como agente da
ordem social. Mas o que caracteriza a ideologia autoritária, além da visão da
desigualdade entre os homens, é que a ordem ocupa todo o espectro dos valores
políticos, e o ordenamento hierárquico que daí resulta esgota toda a técnica da
organização política. Essa preocupação obsessiva pela ordem explica também por
que o pensamento autoritário não pode admitir que o ordenamento hierárquico seja
um simples instrumento temporário para levar a uma transformação parcial ou
integral da sociedade, tal como acontece, pelo menos na interpretação ideológica,
em muitos sistemas autoritários em vias de modernização e nos sistemas
comunistas. Para a doutrina autoritária, a organização hierárquica da sociedade acha
a própria justificação em si mesma e a sua validade é perene. Além do mais, o
autoritarismo, como ideologia da ordem, distingue-se de forma clara do próprio
totalitarismo fascista, já que ele apenas impõe a obediência incondicional e
circunscrita do súdito e não a dedicação total e entusiástica do membro da nação ou
da raça eleita. A ordenação hierárquica do autoritarismo apóia-se essencialmente no
modelo que precedeu a época da Revolução Industrial.
O pensamento autoritário moderno é uma formação de reação contra a ideologia
liberal e democrática. A doutrina contra-revolucionária de J. de Maistre e de Bonald
constitui sua primeira e mais coerente formulação. Mais tarde, com o inexorável
avanço da sociedade industrial e urbana, o autoritarismo compactuará com o
liberalismo, colorir-se-á de um nacionalismo sempre mais vistoso e procurará
respostas para o próprio socialismo. Logo depois da Revolução Francesa, a
sociedade poderá ainda aparecer frente a um bívio: de um lado, a continuação das
correntes inovadoras; de outro, a plena restauração da ordem pré-burguesa. Assim,
Joseph de Maistre (1753-1821) pode contrapor ao iluminismo revolucionário uma
doutrina que é uma reviravolta quase completa dele. Ao racionalismo iluminista ele
opõe um radical irracionalismo. Segundo ele, as coisas humanas são o resultado do
encadeamento imprevisível de numerosas circunstâncias, por detrás das quais está a
Providência divina. É por isso que o homem deve ser educado nos dogmas e na fé e
não no exercício ilusório da razão. À idéia de progresso, ele contrapõe a da
tradição; a ordem social é uma herança da história passada que a consolidou e
experienciou através do curso do tempo. Toda a pretensão do homem em
transformar-se em legislador é perturbadora e desagregadora. À visão da igualdade
dos homens contrapõe a da sua insuprimível desigualdade. À tese da soberania
popular opõe a de que todo poder vem de Deus. Aos direitos do cidadão, o absoluto
dever da obediência do súdito. A ordem do pensamento contra-revolucionário é
rigorosamente hierárquica. Como escreve o visconde de Bonald (1754-1840), o
poder do rei, absoluto e independente dos homens, é a causa; os seus ministros (a
nobreza), que executam a vontade dele, são os meios; a sociedade dos súditos, que
obedece, é o efeito.
Bonald e Maistre iniciam um dos principais filões do pensamento autoritário – o
católico –, o qual, com o passar do tempo, será enriquecido de novos componentes e
assumirá tons inéditos. Por exemplo, pelos meados do século XIX, Juan Donoso
Cortés (1809-1853), frente ao desenvolvimento decisivo do liberalismo e da
democracia e ao crescimento incipiente do socialismo, vê na raiz de todas essas
correntes um pecado contra Deus e uma nostalgia satânica pelo caos. Pronuncia
profecias apocalípticas prevendo que a monarquia não será mais suficiente para
restaurar a ordem e poderá dar vida a uma ditadura política. E entre os fins do
século XIX e o início do século XX, o marquês René de la Tour du Pin (1834-1924)
contrapõe aos sindicatos socialistas uma reativação das corporações da Idade Média
cristã, que deveriam abranger os proprietários, os dirigentes e os trabalhadores de
todos os setores da indústria, esconjurando assim a luta de classes, as quais teriam,
de outra parte, uma função consultiva, de modo a não atacar a autoridade absoluta
da monarquia hereditária.
O autoritarismo foi uma característica importante e corrente do pensamento político
alemão do século XIX. Inicialmente, ele representou uma resistência contra a
unificação nacional e contra a industrialização, embora depois tenha acompanhado
e guiado estas. Citarei apenas alguns autores, cujas idéias tiveram um peso mais
significativo até na política prática: Carl Ludwig Haller (1768-1854), de Berna, que
construiu uma teoria contra-revolucionária fundada sobre a idealização do Estado
patrimonial da Idade Média e exerceu grande influência no círculo político de
Frederico Guilherme IV; Friedrich Julius Stahl (1801-1861), que teorizou sobre a
monarquia hereditária legítima de direito divino, contribuindo para dar forma ao
programa conservador da monarquia prussiana que terminou na obra unificadora de
Bismarck; e Heinrich Treitschke (1834-1896), cujas doutrinas se tornaram parte
integrante da ideologia do império alemão até a Primeira Guerra Mundial.
O pensamento de Treitschke é muito interessante porque nele se reflete a situação
de um Estado autoritário colocado diante do problema de operar uma forte
mobilização social para consolidar a unidade nacional e para dirigir a modernização
a partir de cima. De uma parte acha-se nele um nítido nacionalismo com marcantes
tendências imperialísticas e um moderado acolhimento das teses liberais para levar
a burguesia à colaboração. De outra parte, o cerne da doutrina permanece
autoritário, mesmo se a autoridade não se baseia na vontade de Deus e sobre a
história, e sim na história e na potência da mesma. O Estado é força, tanto para
dentro como para fora, e o primeiro dever dos súditos é a obediência. A melhor
forma de Governo é a monarquia hereditária, que se adapta às desigualdades
naturais da sociedade, ao passo que a democracia contraria os dados naturais. O rei
detém o poder, dirige o exército e a burocracia e escolhe autonomamente seu
Governo. É o modelo da monarquia constitucional prussiana, na qual a função do
Parlamento e dos partidos – que Treitschke admite – é pouco mais do que
consultiva. Essa estrutura hierárquica do sistema político espelha e preserva as
hierarquias naturais da sociedade civil, que têm no vértice a nobreza hereditária, a
"camada eminentemente política", que tem em mãos a direção do Estado; no meio,
a burguesia, que tem um papel importante na vida da cultura e na vida material, mas
que degenera quando quer ocupar-se excessivamente dos negócios públicos; e, na
base, a grande massa dos trabalhadores braçais. Entre esses, Treitschke prefere
significativamente os camponeses, conservadores e ligados à tradição, e olha com
suspeição os operários urbanos, irrequietos e "singularmente sensíveis às idéias de
subversão".
Prosseguindo nessa breve resenha exemplificativa, pode lembrar-se como
característica da primeira metade do século XX a doutrina de Charles Maurras
(1868-1952) que encabeçou o movimento de extrema direita da Action Française na
França da III República e procurou depois do próprio pensamento a ideologia
oficial do regime de Pétain. No contexto social em que Maurras teorizava, a
industrialização tinha já avançado, a penetração do Estado na sociedade era notável
e a eficácia da ação política exigia um alto grau de mobilização. Tudo isso repercute
em traços do pensamento maurrasiano, que não fazem parte do autoritarismo
tradicional, do tipo do nacionalismo "integral", do anti-semitismo e do estilo de
ação política por ele propugnado. Mas, simultaneamente, sua doutrina é
fundamentalmente autoritária. Maurras odeia os "bárbaros" internos, armados com
palavras de ordem sobre a igualdade e a liberdade; e odeia a democracia como força
anárquica e destruidora. A salvação da França está na restauração de uma ordem
que dê novo sangue vital às "belas desigualdades". A ordem de Maurras é
necessariamente hierárquica e encarna uma "monarquia tradicional, hereditária,
antiparlamentar e descentralizada", que tem o direito à obediência incondicional dos
franceses. A descentralização do Estado tornou-se possível graças ao fato de a
autoridade da monarquia ser indestrutível. Ela comporta a autonomia das
comunidades locais e sobretudo um ordenamento corporativo do tipo do de la Tour
du Pin. Uma das pilastras fundamentais da ordem maurrasiana é o exército pelo
qual ele nutria um verdadeiro culto e também a Igreja Católica, entendida não em
sua mensagem cristã, mas como instituição de ordem e de hierarquia, e tudo,
portanto, dentro de uma perspectiva de renovação da aliança do trono e do altar.
Certos aspectos do pensamento de Maurras, como o nacionalismo radical e o antisemitismo,
antecipam claramente o fascismo. Mas o autoritarismo não é o
totalitarismo fascista; e quando para ele conflui ou dele se torna um simples
componente, perde sua natureza mais íntima. Na ideologia fascista, o princípio
hierárquico já não é instrumento de ordemm mas instrumento de mobilização total
da nação para desenvolver uma luta sem limite contra as outras nações. Nesse
sentido, no fascismo a ideologia autoritária cessa e torna-se outra coisa.
Depois da Segunda Guerra Mundial e das conseqüências que dela derivaram, a
ideologia autoritária acha-se frente a um mundo hoje muito estranho para poder
lançar raízes profundas. Não faltam regimes autoritários de tipo conservador; mas é
difícil que eles encontrem sua justificação numa ideologia autoritária explícita e
decisiva. Como veremos abaixo, Juan Linz afirma que os atuais regimes
autoritários, incluindo os conservadores, são caracterizados não pela ideologia, mas
por simples "mentalidade". Essa diferenciação é talvez muito explícita e poderia ser
formulada de maneira diferente, distinguindo entre ideologias de alto e de baixo
grau de articulação simbólica e conceptual. Entretanto, fica sempre a verdade de
que as ideologias autoritárias de hoje têm um modesto nível de elaboração. E isso,
por sua vez, depende do fato crucial da perspectiva da conservação de uma ordem
hierárquica estabelecida definitivamente e essencialmente ligada ao passado préburguês
que foi inexoravelmente marginalizada como uma antiqualha inútil, por um
mundo que é dominado, de fato e pelas expectativas dos homens, pela
industrialização, pelo urbanismo e pela idéia de progresso e de mudança contínua
da sociedade.
Parece portanto que a ideologia autoritária não tem futuro. Parece ainda que para
ressurgir deverá adaptar-se aos novos tempos e corrigir de forma substancial sua
filosofia. Na base de conjecturas, poderá imaginar-se que num mundo
industrializado ela não poderá deixar de juntar à preservação da ordem um tipo de
administração da mudança social; e também que nessa alteração de rota poderá
fazer reviver parcialmente o autoritarismo comtiano e um certo filão elitístico que
propugnou ou fantasiou uma elite dos intelectuais e dos competentes. A forma mais
provável é talvez a de uma tecnocracia coerente levada até as últimas
conseqüências.
III. Personalidades e atitudes autoritárias. Muitos aspectos da personalidade
autoritária foram já enucleados na descrição do "caráter autoritário" feita por Eric
Fromm em Fuga da liberdade (1941). O texto fundamental nesse campo é, todavia,
a pesquisa monumental de Theodor W. Adorno e dos seus colaboradores, A
personalidade autoritária, publicada em 1950. Essa pesquisa tem em mira
descrever o indivíduo potencialmente fascista cuja estrutura da personalidade é tal
que o torna particularmente sensível à propaganda antidemocrática. Os autores
procuram na verdade demonstrar que o anti-semitismo, que constituía o tema inicial
da pesquisa, é um aspecto de uma ideologia mais complexa caracterizada, entre
outras coisas, pelo conservadorismo político-econômico, por uma visão
etnocêntrica e, mais em geral, por uma estrutura autoritária da personalidade. Nesse
quadro, a personalidade autoritária é descrita como um conjunto de traços
característicos inter-relacionados. Cruciais são as assim chamadas "submissão" e
"agressão" autoritárias: de uma parte, a crença cega na autoridade e a obediência
voltada para os superiores e, de outra, o desprezo pelos inferiores e a disposição em
atacar as pessoas débeis que socialmente são aceitáveis como vítimas. Outros traços
relevantes são a aguda sensibilidade pelo poder, a rigidez e o conformismo. A
personalidade autoritária tende a pensar em termos de poder, a reagir com grande
intensidade a todos os aspectos da realidade que tocam, efetivamente ou na
imaginação, as relações de domínio. É intolerante para com a ambigüidade, refugiase
numa ordem estruturada de modo elementar e inflexível e faz um uso marcado de
estereótipos tanto no pensamento como no comportamento. É particularmente
sensível em relação à influência de forças externas e tende a aceitar supinamente
todos os valores convencionais do grupo social a que pertence. A essas
características, Adorno e seus colaboradores juntaram outras que podemos passar
adiante nessa exposição.
A interpretação que Adorno e seus colaboradores deram da personalidade
autoritária é profundamente psicanalítica. Uma relação hierárquica e opressiva entre
pais e filhos cria no filho um comportamento muito intenso e profundamente
ambivalente em relação à autoridade. De um lado, existe uma forte disposição para
a submissão; de outro lado, poderosos impulsos hostis e agressivos. Estes últimos
impulsos são porém drasticamente eliminados pelo superego. E a extraordinária
energia dos impulsos contidos, enquanto contribui para tornar mais cega e absoluta
a obediência à autoridade, é, em sua maior parte, dirigida para a agressão contra os
débeis e inferiores. É portanto um mecanismo por meio do qual o indivíduo procura
inconscientemente superar seus conflitos interiores, o que desencadeia o dinamismo
da personalidade autoritária. O indivíduo, para salvar o próprio equilíbrio ameaçado
em sua raiz pelos impulsos em conflito, agarra-se a tudo quanto é força e energia e
ataca tudo quanto é fraqueza. A esse dinamismo fundamental estão ligados todos os
outros traços da personalidade autoritária: desde a tendência a depender de forças
externas até a preocupação obsessiva pelo poder e desde a rigidez até o
conformismo.
O estudo de 1950 foi sujeito de várias críticas relativas tanto ao método usado como
aos resultados obtidos. Entre as críticas de método lembraremos aquela segundo a
qual a tendência dos sujeitos examinados a dar respostas "altas", isto é, a declarar-se
de acordo com as proposições do questionário, pode depender mais do que de uma
escolha de valores a respeito do conteúdo da proposição, da propensão a não
discordar de uma afirmação já formulada. Essa propensão pode estar ligada
principalmente a pessoas de baixa renda e com um baixo nível de instrução. Essa
crítica é importante porque as diversas escalas empregadas na pesquisa (escalas do
anti-semitismo, do etnocentrismo, do conservadorismo político-econômico e das
tendências antidemocráticas) foram todas construídas de modo que as respostas
"altas", ou seja, do consenso mais ou menos destacado a respeito das proposiçõesteste,
constituíssem uma medida direta dos parâmetros politicamente "negativos": o
anti-semitismo, o etnocentrismo, o conservadorismo político-econômico e as
tendências antidemocráticas.
Foi observado também que as proposições-teste refletem de maneira acentuada a
posição de esquerda moderada dos autores, de tal maneira que o que se conclui não
é o autoritarismo tout court, mas apenas o autoritarismo de tipo fascista. Segundo
essa crítica, Adorno e seus colaboradores trocaram a dicotomia preconceitotolerância
pela de direita-esquerda, com a conseqüência de ignorar totalmente os
preconceitos associados às ideologias de esquerda e mais em geral o autoritarismo
de esquerda. Na verdade, pode afirmar-se que, com base nas respostas aos
questionários preparados por Adorno e pelos seus colaboradores, uma pessoa
autoritária de esquerda teria verossimilmente obtido um total de pontos muito baixo
e teria sido considerada não autoritária. Pesquisas posteriores, levadas a cabo até
mesmo por alguns colaboradores de Adorno, procuraram corrigir esse
"tendenciosismo" da personalidade autoritária.
Mas a crítica mais comum e mais importante é talvez aquela que diz respeito à base
exclusivamente psicanalítica da interpretação da personalidade autoritária.
Observou-se que uma interpretação mais completa desse tipo de personalidade
requereria uma consideração exaustiva do ambiente social, das diversas situações e
dos diversos grupos que podem influenciar a personalidade. Isso porque muitos
fenômenos que à primeira vista aparecem como fatores de personalidade, depois de
uma análise mais cuidada, podem revelar-se apenas como efeito de específicas
condições sociais. Nessa linha foi-se constituindo, por parte de vários autores, uma
segunda explicação da formação da personalidade autoritária: a do chamado
"autoritarismo cognitivo". Segundo essa colocação, os traços da personalidade
autoritária baseiam-se simplesmente em certas concepções da realidade existentes
numa determinada cultura ou subcultura. Essas concepções são apreendidas pelo
indivíduo por meio do processo de socialização e correspondem de forma mais ou
menos realística às efetivas condições de vida de seu ambiente social. Na realidade,
essas duas interpretações da personalidade autoritária não se excluem
necessariamente entre si. Numerosas pesquisas empíricas feitas recentemente
parecem mostrar que em certas situações ou em certas classes sociais encontram-se
muitos dos fatos mencionados pela teoria do "autoritarismo cognitivo", enquanto
em outras situações e em outras classes sociais a interpretação psicanalítica mantém
uma maior eficácia explicativa.
Indubitavelmente inclinada para uma interpretação sociológica mais do que
psicológica dos comportamentos autoritários é a tese do "autoritarismo da classe
trabalhadora", destacada principalmente por Seymour M. Lipset. Essa tese não nega
a existência de tendências autoritárias nas classes elevadas e médias, mas sustenta
que na sociedade moderna as classes mais baixas se tornaram pouco a pouco a
maior reserva de comportamentos autoritários. Por autoritarismo não se entende
aqui a síndrome da personalidade autoritária em toda a sua complexidade, mas de
preferência uma série de atitudes individuais condizentes com uma disposição
psicológica autoritária: uma baixa sensibilidade em relação às liberdades civis, a
intolerância, baixa inclinação para sustentar um sistema pluripartidário, intolerância
frente aos desvios dos códigos morais convencionais, propensão para participar de
campanhas contra os estrangeiros ou minorias étnicas ou religiosas, tendência para
apoiar partidos extremistas, etc. Numerosas pesquisas mostraram que esses
comportamentos estão presentes mais acentuadamente nas classes baixas. Lipset
imputa essa correlação à situação social da classe trabalhadora, caracterizada por
um baixo nível de instrução, por uma baixa participação na vida de organismos
políticos e de associações voluntárias, por pouca leitura e escassa informação, pelo
isolamento derivado do tipo de atividade desenvolvida (um fator que age em grau
máximo no caso dos camponeses e de outros trabalhadores, como os mineiros), pela
insegurança econômica e psicológica e pelo caráter autoritário da vida familiar.
Todos esses fatores contribuem para a formação de uma perspectiva mental pobre e
indefesa, feita de grande sugestionabilidade, de falta de um senso do passado e do
futuro, de incapacidade de ter uma visão complexa das coisas, de dificuldade de
elevar-se acima da experiência concreta e de falta de imaginação. É exatamente
dentro dessa perspectiva mental que deve ser procurada, segundo Lipset, a
complexa base psicológica do autoritarismo.
Também à tese de Lipset foram dirigidas diversas críticas quer quanto ao método
quer quanto à interpretação. No plano do método foi observado, por exemplo, que,
em algumas pesquisas utilizadas por Lipset, o modo de calcular os percentuais, que
em certos casos equiparava as respostas "não sei" àquelas que eram abertamente
intolerantes, era desfavorável às classes baixas, nas quais existe maior quantidade
de respostas incertas ou ausência de opinião. Além disso, o tipo de perguntas
dirigidas aos entrevistados favorecia a classe média, já que tais perguntas se
referiam a argumentos que poderiam ser interessantes e compreensíveis para as
pessoas de classe média, mas não da mesma maneira para os trabalhadores. No
plano da interpretação, e com referência especial à classe operária, objetou-se que
deveria ser levada em conta não apenas a condição de operário, mas a proveniência
social do operário. E uma tentativa de reelaborar os dados nesse sentido parece
mostrar que o autoritarismo deveria ser atribuído sobretudo aos operários de
imediata proveniência campesina. Foi notado ainda que os estudos sobre o
autoritarismo da classe operária deveriam ter em conta a mobilidade vertical, uma
vez que há razões para acreditar que são sobretudo autoritários os elementos que
descem da classe média para a classe operária; e também que, ao contrário, são
tolerantes aqueles que vão da classe operária para a classe média.
IV. Regimes e instituições autoritárias. Em sentido generalíssimo, fala-se de
regimes autoritários quando se quer designar toda a classe de regimes
antidemocráticos. A oposição entre autoritarismo e democracia está na direção em
que é transmitida a autoridade e no grau de autonomia dos subsistemas políticos (os
partidos, os sindicatos e todos os grupos de pressão em geral). Debaixo do primeiro
perfil, os regimes autoritários se caracterizam pela ausência de Parlamento e de
eleições populares, ou, quando tais instituições existem, pelo seu caráter meramente
cerimonial, e ainda pelo indiscutível predomínio do poder executivo. No segundo
aspecto, os regimes autoritários se distinguem pela ausência da liberdade dos
subsistemas, tanto no aspecto real como no aspecto formal, típica da democracia. A
oposição política é suprimida ou obstruída. O pluralismo partidário é proibido ou
reduzido a um simulacro sem incidência real. A autonomia dos outros grupos
politicamente relevantes é destruída ou tolerada enquanto não perturba a posição do
poder do chefe ou da elite governante. Nesse sentido, o autoritarismo é uma
categoria muito geral que compreende grande parte dos regimes políticos
conhecidos, desde o despotismo oriental até o império romano, desde as tiranias
gregas até as senhorias italianas, desde a moderna monarquia absoluta até a
constitucional de tipo prussiano, desde os sistemas totalitários até as oligarquias
modernizantes ou tradicionais dos países em desenvolvimento. Se tivermos
presentes apenas os sistemas políticos atualmente existentes e concentrarmos a
atenção sobre o papel que neles têm os partidos, podemos distinguir três formas de
regimes autoritários, segundo observações de Samuel P. Huntington e de Clemente
H. Moore: os regimes sem partidos, que correspondem habitualmente a níveis
bastante baixos de mobilização social e de desenvolvimento político (Etiópia de
Hailé Selassié, por exemplo); os regimes de partido único – no sentido real e não
formal da expressão – que são os mais numerosos (a União Soviética, por exemplo);
e, mais raramente, os regimes pluripartidários em que diversos partidos
convencionam não competir entre si, produzindo resultados funcionais muito
semelhantes àqueles que encontramos no monopartidarismo (caso da Colômbia).
Todavia, na classificação dos regimes políticos contemporâneos, o conceito de
autoritarismo é empregado muitas vezes para designar não todos os sistemas
antidemocráticos, mas apenas uma sua subclasse. Nesse sentido, distingue-se entre
autoritarismo e totalitarismo. A propósito dessa distinção, devemos dizer, em
termos preliminares, que enquanto o uso estrito que se faz de autoritarismo é útil e
legítimo, o uso amplo de "totalitarismo" traz consigo inconvenientes sérios, sendo
vivamente criticado. Na verdade, o que se contrapõe aos regimes autoritários são
todos os regimes monopartidários com índices de alta mobilização política. No
verbete Totalitarismo (v.) encontraremos uma discussão explícita desse ponto. Na
exposição presente, para simplificar, continuaremos falando, embora com a devida
cautela, de regimes "totalitários". Para isso, deveremos voltar à nossa distinção: ela
poderá ser levada ao grau da penetração e da mobilização política da sociedade e
aos instrumentos a que a elite governante especificamente recorre. Nos regimes
autoritários a penetração-mobilização da sociedade é limitada: entre Estado e
sociedade permanece uma linha de fronteira muito precisa. Enquanto o pluralismo
partidário é suprimido de direito ou de fato, muitos grupos importantes de pressão
mantêm grande parte da sua autonomia e por conseqüência o Governo desenvolve
ao menos em parte uma função de árbitro a seu respeito e encontra neles um limite
para o próprio poder. Também o controle da educação e dos meios de comunicação
não vai além de certos limites. Muitas vezes é tolerada até a oposição, se essa não
for aberta e pública. Para alcançar seus objetivos, os Governos autoritários podem
recorrer apenas aos instrumentos tradicionais do poder político: exército, polícia,
magistratura e burocracia. Quando existe um partido único, também acontece que
ele não assume o papel crucial tanto no que diz respeito ao exercício do poder como
no que se refere à ideologia, tal como acontece nos regimes "totalitários". Nestes
últimos regimes, a penetração-mobilização da sociedade, ao contrário, é muito alta:
o Estado, ou melhor, o aparelho do poder, tende a absorver a sociedade inteira.
Neles, é suprimido não apenas o pluralismo partidário, mas a própria autonomia dos
grupos de pressão que são absorvidos na estrutura totalitária do poder e a ela
subordinados. O poder político governa diretamente as atividades econômicas ou as
dirige para seus próprios fins, monopoliza os meios de comunicação de massa e as
instituições escolares, suprime até manifestações críticas de pequeno porte ou de
oposição, procura aniquilar ou subordinar a si as instituições religiosas, penetra em
todos os grupos sociais e até na vida familiar. Esse grande esforço de penetração e
de mobilização da sociedade comporta uma intensificação muito destacada da
propaganda e de arregimentação. Daqui nasce a importância central do partido
único de massa, portador de uma ideologia fortemente dinâmica; e, em certos casos
extremos, comporta também uma intensificação muito forte da violência; e daí
nasce a importância, em casos extremos, da polícia secreta e dos outros
instrumentos de terror.
O sociólogo político Juan Linz, que é dos autores que mais contribuíram para
precisar a distinção entre "autoritarismo" e "totalitarismo" na tipologia dos sistemas
políticos contemporâneos, propõe essa definição: "Os regimes autoritários são
sistemas políticos com um pluralismo político limitado e não responsável; sem uma
ideologia elaborada e propulsiva, mas com mentalidade característica; sem uma
mobilização política intensa ou vasta, exceção feita em alguns momentos de seu
desenvolvimento; e no qual um chefe, ou até um pequeno grupo, exerce o poder
dentro dos limites que são formalmente mal definidos, mas de fato habilidosamente
previsíveis". O primeiro ponto diz respeito ao pluralismo político: um pluralismo
limitado de direito e de fato, mais tolerado do que reconhecido e não responsável,
no sentido de que o recrutamento político de indivíduos provenientes das diversas
forças sociais não se baseia em um princípio operante de representatividade dessas
forças sociais, mas sobre escolha e preferência do alto. O segundo ponto destaca o
baixo grau de organização e de elaboração conceptual das teorias que justificam o
poder dos regimes autoritários e, por conseqüência, a sua modesta dinâmica
propulsiva. O terceiro ponto acentua a escassa participação da população nos
organismos políticos e parapolíticos, que caracteriza os regimes autoritários
estabilizados, mesmo quando em certas fases de sua história, especialmente em
fases iniciais, a mobilização pode ser muito maior. Finalmente, o quarto aspecto
torna claro o fato de que o poder do chefe ou da elite governante se exerce dentro de
limites bastante definidos, mesmo quando não estão estabelecidos formalmente.
Esses limites estão evidentemente ligados a outros aspectos dos regimes
autoritários: o pluralismo moderado, a falta de uma ideologia propulsiva, escassa
mobilização e ausência de um eficiente partido de massa.
O grau relativamente moderado da penetração no tecido social dos regimes
autoritários depende sempre do atraso mais ou menos marcante da estrutura
econômica e social. Mas, nesse contexto, a elite governante pode ter dois papéis
diversos: pode reforçar o modesto grau de penetração do sistema político,
escolhendo deliberadamente uma política de mobilização limitada, ou escolher uma
política de mobilização acentuada cujos limites serão definidos pelas condições do
ambiente. Com base no comportamento desses fatores, G. A. Almond e G. B. Powel
distinguem, no âmbito dos regimes autoritários, entre regimes autoritários de tipo
conservador e regimes autoritários em vias de modernização. Os regimes
autoritários conservadores, como os de Franco e de Salazar, surgem dos sistemas
políticos tradicionais dinamizados por uma parcial modernização econômica, social
e política, e têm em vista limitar a destruição da ordem social tradicional usando
algumas técnicas modernas de organização, de propaganda e de poder. O poder de
mobilização, porém, é muito limitado. O regime não procura entusiasmo e
sustentação, contenta-se com a aceitação passiva e tende a desencorajar a
doutrinação ideológica e o ativismo político. Os regimes autoritários em vias de
modernização que podem ser encontrados em vários países do terceiro mundo
surgem em sociedades caracterizadas por uma modernização ainda muito débil e
obstaculizada por vários estrangulamentos sociais. Eles pretendem reforçar e tornar
incisivo o poder político para superar os impasses no caminho do desenvolvimento.
A caminhada para a mobilização é por isso muito mais forte do que nos regimes de
tipo conservador; mas a força de penetração do regime é limitada pela consistência
das forças sociais conservadoras e tradicionais e pelo atraso geral da estrutura social
e da cultura política. Nessa situação, a elite governante se esforça por introduzir os
instrumentos modernos de mobilização social, mas não está em condições de
organizar um partido de massa verdadeiramente eficiente.
Essas dificuldades que a elite governante enfrenta são ainda maiores nos regimes
autoritários pré-mobilizados, já que o ambiente que os caracteriza é uma sociedade
ainda quase inteiramente tradicional, tanto na estrutura social como na cultura
política. Num certo sentido, tais regimes não são senão "meros acidentes históricos,
isto é, sistemas nos quais, em conseqüência do influxo do colonialismo e da difusão
das idéias e das atividades existentes em países mais desenvolvidos, criou-se uma
elite modernizante e uma estrutura política diferenciada, muito antes que se tenha
sentido a necessidade ou o impulso de desenvolver tais estruturas e culturas por
própria conta". Os enormes obstáculos que se opõem à mobilização política e à
modernização, em casos como esses, ficaram bem ilustrados com os acontecimentos
de Gana na época de Nkrumah.
Uma tipologia dos regimes autoritários contemporâneos, mais minuciosa e
articulada, é a proposta por J. Linz. Prevê cinco formas principais e duas
secundárias, sete tipos ao todo. 1) Os regimes autoritários burocrático-militares são
caracterizados por uma coalizão chefiada por oficiais e burocratas e por um baixo
grau de participação política. Falta uma ideologia e um partido de massa; existe
freqüentemente um partido único, que tende a restringir a participação; às vezes
existe pluralismo político, mas sem disputa eleitoral livre. É o tipo de autoritarismo
mais difundido no século XX: são disso exemplo o Brasil e a Argentina em alguns
períodos de suas histórias, a Espanha de Primo de Rivera e os primeiros anos de
Salazar em Portugal. 2) Os regimes autoritários de estatalismo orgânico são
caracterizados pelo ordenamento hierárquico de urna pluralidade não competitiva
de grupos que representam diversos interesses e categorias econômicas e sociais,
bem como por um certo grau de mobilização controlada da população em formas
"orgânicas". Existe também amiúde um partido único, com um papel mais ou menos
relevante, ao mesmo tempo que a perspectiva ideológica do regime assenta numa
certa versão do corporativismo. Exemplo típico do estatalismo orgânico
encontramos no Estado Novo português; mas também há tendências corporativas na
Itália fascista, na Espanha franquista e em alguns países da América Latina. 3) Os
regimes autoritários de mobilização em países pós-democráticos se distinguem pelo
grau relativamente mais elevado de mobilização política, a que corresponde o papel
mais incisivo do partido único e da ideologia dominante, e por um grau
relativamente mais baixo de pluralismo político permitido. São os regimes
usualmente chamados "fascistas" ou, pelo menos, a maior parte deles. O caso mais
representativo é o do fascismo italiano. 4) Os regimes autoritários de mobilização
pós-independência são os resultantes da luta anticolonial e da conquista da
independência nacional, especialmente espalhados pelo continente africano.
Caracterizam-se pelo surgimento de um partido único ainda débil e não apoiado
pelas formações paramilitares típicas dos regimes fascistas, por uma leadership
nacional muitas vezes de caráter carismático, por um incerto componente
ideológico e por um baixo grau de participação política. 5) Os regimes autoritários
pós-totalitários são representados pelos sistemas comunistas após o processo de
desestalinização. São o resultado combinado de diversas tendências: formação de
interesses em conflito – portanto de um pluralismo limitado –, despolitização
parcial das massas, atenuação do papel do partido único e da ideologia, acentuada
burocratização. São tendências que provocam uma transformação considerável e
sólida do anterior modelo totalitário. A esses cinco tipos principais de regimes
autoritários Linz acrescentou ainda o 6) totalitarismo imperfeito, que constitui
geralmente uma fase transitória de um sistema cuja evolução para o totalitarismo é
sustada e tende depois a transformar-se em qualquer outro tipo de regime
autoritário, e 7) a chamada democracia racial, domínio autoritário de um grupo
racial sobre outro grupo racial que representa a maioria da população (Àfrica do
Sul), embora internamente ele seja regido pelo sistema democrático.
Em analogia com os regimes políticos, pode-se atribuir o caráter do autoritarismo
também a outras instituições sociais familiares, escolares, religiosas, econômicas e
outras. Nesse campo, o conceito de autoritarismo torna-se muito genérico e pouco
preciso, ainda que seja claro que, para as outras instituições sociais, tal como
acontece com os regimes políticos, ele se refere à estrutura das relações de poder.
Seria lícito dizer que uma instituição é tanto mais autoritária quanto mais as
relações de poder que a distinguem são confiadas a comandos apodíticos e ameaças
de punição e tendem a excluir ou a reduzir ao mínimo a participação de baixo na
tomada de decisões. Mas se pode ser relativamente fácil concordar em geral sobre
os parâmetros do autoritarismo das instituições, é muito mais difícil concordar
sobre sua aplicação concreta a essa ou àquela instituição. Nesse campo tornam-se
claramente relevantes, mais do que em qualquer outra circunstância, as orientações
de valor das diversas correntes. Isso pode ser facilmente observado considerando as
respostas que de costume são dadas aos dois principais problemas que emergem no
setor.
O primeiro problema pode ser formulado da seguinte maneira: até que ponto é
legítima a analogia entre os conceitos de democracia e de autoritarismo ao nível
dos regimes políticos e os mesmos conceitos ao nível das diversas instituições
sociais? De uma parte, alguns tendem a levar a analogia muito à frente, querem
democratizar as várias instituições sociais, introduzindo parlamentos e assembléias
com o máximo poder de decisão, na escola, na fábrica, na igreja, etc. e chamam de
autoritárias todas as instituições que não se conformam com tais critérios. O alvo do
ataque dessa tendência radical é, em particular, a estrutura hierárquica das grandes
unidades econômicas contemporâneas, para as quais a analogia com os regimes
políticos não poderia ser negada desde o momento em que apenas as instituições
sociais estão em condições de tomar decisões do mesmo alcance que o Governo. De
outra parte, há aqueles que refutam essa extensão do significado de autoritarismo,
os quais defendem o princípio da pluralidade das estruturas de poder nas diferentes
instituições, afirmando que uma excessiva difusão dos processos democráticos de
derivação política só leva a desnaturar a fisionomia específica e a minar o bom
funcionamento dos diversos setores institucionais. Afirma-se, por exemplo, que nas
instituições que dizem respeito às relações entre adultos e jovens, como a família e
a escola, existe uma desigualdade de base que não permite uma total analogia com o
sistema político; ou que a democratização dos problemas econômicos as privaria da
sua eficiência.
Conexo com a resposta radical ou moderada que se dá ao primeiro problema é o
tipo de solução do segundo problema que diz respeito à conexão entre a democracia
e o autoritarismo das instituições sociais e a democracia e o autoritarismo do
sistema político. Para os moderados, a conexão não existe ou então é mínima. Não
só a organização hierárquica da família e da unidade econômica, mas também a
estrutura oligárquica dos próprios partidos, não atinge a democracia. Por um lado, a
oligarquia ao nível de partido político se converte na democracia ao nível de
sistema em seu conjunto, se existe uma pluralidade de partidos .que periodicamente
e livremente lutam pelo poder de Governo por meio do voto popular. Nesse quadro,
um certo grau de apatia política das massas é compatível com a democracia e pode
até ser útil para a sua estabilidade. Para a posição radical, ao contrário, a
democracia de um sistema político é avaliada com base na real participação dos
cidadãos na formação das decisões; e nas atuais democracias liberais, a participação
política é realmente insuficiente, porque os homens não são educados para uma tal
participação, que muitas vezes diz respeito a problemas longínquos e abstratos, por
meio da oportunidade de participar das decisões que os tocam de perto na sua
experiência concreta. Nessa perspectiva, a conexão entre o autoritarismo ou a
democracia das outras instituições sociais e o autoritarismo ou a democracia do
sistema político torna-se bastante estreita. Um sistema político democrático
pressupõe uma sociedade democrática; e por isso as atuais democracias liberais
devem sujeitar-se a uma profunda transformação, no sentido de uma nítida
democratização das instituições sociais que, tal como acontece com as instituições
econômicas, envolvem mais diretamente os interesses dos homens que nelas
trabalham dia a dia.
Uma posição intermediária a respeito do problema da conexão está implícita na
teoria da estabilidade dos sistemas políticos de Harry Eckstein. Segundo esse
cientista político, a estabilidade se apóia na "congruência" entre o modelo de
autoridade do regime político e os modelos de autoridade vigentes nas instituições
sociais. Nesse sentido, a estabilidade da democracia inglesa e da norueguesa
depende do fato de que uma análoga dosagem de democracia e de autoridade
caracteriza tanto o Governo como as instituições sociais; enquanto a derrubada da
República de Weimar se atribui ao contraste claro entre a organização democrática
do Governo e a estrutura marcadamente autoritária das instituições sociais. Aqui,
todavia, "congruência" nem sempre quer dizer um pleno "isomorfismo", mas muitas
vezes indica uma semelhança "gradativa", mais relevante nas instituições mais
próximas do Governo (partidos, grupos de pressão, associações voluntárias entre
adultos) e muito menos significativa nas instituições mais distantes, como a família,
a escola e forças de produção. Segundo Eckstein, o insuprimível componente
autoritário de diversas instituições sociais torna mais estáveis os sistemas políticos
nos quais a democracia do Governo é atenuada por uma certa "impureza".
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[Mário Stoppino]
Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília
01/07 - Segunda avaliação
08/07 - Entrega de notas. Revisão de notas
15/07 - Prova substitutiva

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